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Migrante empreendedor: o grau zero do neoliberalismo?

Empreendedorismo muitas vezes é considerado como solução para integrar imigrandes

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Sofia Cavalcanti Zanforlin

Doutora pela ECO-UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Também é coordenadora do Núcleo Migra - Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações (DCG/DCOM/UFPE), do Grupo de trabalho Diaspora and Media– IAMCR (International Association of Media and Communication Research) e do GT Comunicação e Cidadania da COMPÓS

As migrações são um fenômeno central do mundo contemporâneo que desafia todos os países envolvidos em nível econômico, político e social. Neste contexto, o empreendedorismo muitas vezes é considerado como a solução para integrar as pessoas migrantes na sociedade de chegada. Trata-se de mais um mito neoliberal ou de uma opção viável especialmente para os países do Sul global como os latino-americanos?

Em “O Nascimento da Biopolítica”, Michel Foucault descreve o migrante como um empreendedor, já que um dos elementos constituintes do capital humano, conceito central no neoliberalismo, é a mobilidade, isto é, a capacidade de um indivíduo se deslocar.

Se migrar num primeiro momento representaria um custo, material, psicológico e de interrupção dos ganhos financeiros e aumento de gastos, esse custo com o tempo seria passível de se converter em investimento, em melhoramento de estatuto e de remuneração. Diz Foucault, “a migração é um investimento, o migrante é um investidor. É um empresário de si mesmo que faz algumas despesas de investimento para obter um certo melhoramento”.

O Brasil tem se posicionado desde finais do seculo 20 como um importante país de trânsito e destino para as migrações Sul-Sul. Neste contexto, apesar de que, segundo um recente relatório do Observatório das Migrações (OBMIGRA), no período 2010-2019, o número de trabalhadores imigrantes com carteira de trabalho assinada passou de 55,1 mil para 147,7 mil, o que prevalece nesta categoria é a informalidade e a vida ganha diariamente.

O emprendorismo se torna, portanto, uma saída e, muitas vezes, é proposto por governos e organizações internacionais como a “melhor” forma de inserção socioeconômica das pessoas migrantes e refugiadas. O caráter, por excelência “empreendedor” do migrante que destaca Foucault é, desta forma, utilizado e inclusive “explorado” pela sociedade em termos econômicos.

Há cinco anos pesquiso programas de empreendedorismo destinados a incluir economicamente migrantes e refugiados no Brasil e os resultados do trabalho tem me permitido compreender em profundidade o mundo do empreendedorismo das pessoas migrantes e refugiadas.

Nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, os coletivos/ONGs que analisamos, anunciavam de maneira similar os seus objetivos: integração de migrantes/solicitantes de refúgio e refugiados na sociedade brasileira, por meio de treinamento, profissionalização e inserção no mercado de trabalho, e “empoderamento” pessoal. Os serviços oferecidos pelas ONGs vão de catering para empresas, palestras motivacionais dadas por migrantes e refugiados, além da participação em feiras e eventos gastronômicos, com comida típica dos países de origem.

O crescimento desses coletivos visando ao empreendedorismo tem aumentado muito nos últimos anos, a partir de uma perspectiva que pensa o empreendedorismo como solução para a integração das pessoas migrantes, especialmente nos países do Sul global como os latino-americanos. Mas o que acontece com os migrantes intrarregionais (como os bolivianos e venezuelanos), ou extrarregionais (como os sírios e angolanos) depois dos treinamentos, anunciados como meio de empoderamento e independência financeira? Estas pessoas são, de fato, incluídas economicamente? Ou, ainda, ocorre o propalado “empoderamento”?

Mitos e realidade do empreendedorismo migrante

Ao se transformar em sua própria empresa, a história pessoal e cultural do migrante/refugiado surge, nesse contexto, como fator de atração e de atenção, tanto para o que estão a vender como para si mesmos. O sírio que fugiu da guerra ou a venezuelana que teve que abandonar seu país pela crise humanitária se torna, portanto, um empresário de si mesmo.

Migrantes e refugiados são apresentados e treinados para mobilizar o potencial de transformação e inspiração que suas trajetórias ensejam, que pode ser encontrado nos catálogos de eventos e nos sites das ONGs ou em palestras do tipo TEDx, por exemplo. O que ressalta o trabalho comunicacional que o neoliberalismo operacionaliza, ao vincular a ideia de inspiração por meio de trajetórias de superação e sucesso. O migrante ou refugiado empreendedor torna-se personagem preferencial dessa narrativa.

Se concordamos que outra das marcas constitutivas do neoliberalismo é a operacionalização da noção de liberdade em uma onde o individualismo traduzido pela ideia de “seja seu próprio chefe, seja dono do seu tempo, seja um empreendedor de si”, teríamos assim o migrante ou refugiado empreendedor como personagem aglutinador do modelo neoliberal: aquele individuo que, saído de um contexto de perda, “dá a volta por cima” como empreendedor de si.

No entanto, os relatos coletados na nossa pesquisa contradizem a imagem elaborada do migrante e o refugiado “de sucesso” sobre a temática. Sem direitos trabalhistas assegurados, sem previsibilidade orçamentária, uma vez que se um evento é cancelado o impacto na renda é irremediável, migrantes e refugiados empreendedores ficaram ainda mais vulneráveis pela pandemia. Ainda, como a maioria cozinha em casa, as fronteiras entre intimidade, tempo com a família e lazer, são borradas e todos são tragados para a rotina de compra de insumos, cozinhar, embalar, levar para o evento, que passa a ser o elemento centralizador dessas vidas, cuja consequência é o relato de cansaço, adoecimento e, sobretudo, endividamento.

Ainda que essa descrição possa ser compartilhada por muitos brasileiros e latino-americanos em situação semelhante, ressalte-se dois fatores peculiares aos migrantes e refugiados: a falta de uma rede de apoio familiar e de amigos, por serem estrangeiros, e as dificuldades de acesso ao crédito, que agudizam a vulnerabilidade e dependência de frágeis fontes de renda.

O renascimento do sujeito de direitos

O que constatamos a partir da nossa pesquisa é o que a pandemia descortina sobre o neoliberalismo. A realidade está composta por relatos de pessoas vivendo o presente sem ter assegurado minimamente um futuro, em condição de precariedade permanente. Esta realidade se torna ainda mais complexa em países em desenvolvimento como os latino-americanos. Assim, o que precisamos discutir para uma transformação da rotina exaustiva dessas pessoas, é um outro tipo de trabalho comunicacional, que não tenha pudor de apontar o fracasso de um modelo que prima pelo sacrifício como modo de existir.

Apesar de que os migrantes e refugiados empreendores constituem um setor específico e ainda são uma minoria, ao longo da pesquisa, uma das perguntas finais que realizamos foi se a pessoa se sente empoderado/a? E a resposta era sempre a mesma: “Eu me sinto cansado/a”. Para superar esta realidade, desde uma abordagem integral do fenômeno migratório como fenômeno social, é o momento de reivindicar novos sujeitos, não o do empreendimento de si, mas o renascimento do sujeito de direitos: econômicos, sociais e culturais.

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