Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A epilepsia de Dostoiévski e o nascimento da neurociência

Como seriam seus livros se ele tivesse recebido um tratamento eficiente contra sua doença?

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Dmitry Grigorovich sabia o que estava prestes a acontecer quando contemplou, mais uma vez, a súbita mudança de expressão de seu amigo. Diante dele estava a face que deixava transparecer os quase imiscíveis sentimentos de pavor e de indiferença. A face que denunciava uma eminente convulsão. Por isso, adiantou-se para amparar seu colega, que sucumbia inconsciente à gravidade. Desta vez, a convulsão persistia por tempo maior do que antes vira.

Apavorado, Grigorovich levou seu parceiro até a primeira botica que encontrou com ajuda de estranhos. Lá, o rapaz que continuava em convulsão recebeu uma desorganizada ajuda entre abanos e aplicações de éteres no rosto, em uma tentativa de reanimação. Algum tempo depois, acordou confuso e agressivo. Recuperado, foi levado para casa e lá permaneceu melancólico por três dias.

Essa história que ocorreu na Rússia de 1844 seria vulgar demais não fossem seus envolvidos. Grigorovich, que de fato um dia descreveu aquela cena, foi autor do primeiro romance russo a narrar a vida de camponeses comuns. O outro jovem era o monumental Fiódor Dostoiévski, escritor que transformou em alta literatura os acontecimentos causados por suas crises.      

Retrato do escritor Dostoievski, pelo pintor russo Vassily Perov
Retrato do escritor Dostoievski, pelo pintor russo Vasily Perov - Reprodução

Criativamente, o autor converteu em arte não só o constrangimento e sofrimento mas também experiências neurológicas inusitadas que antecediam suas convulsões. Um exemplo eram as alucinações, em que cenas completas eclipsavam sua visão. Outro eram os frequentes déjà vus. Mas, em certas ocasiões, sentia forte angústia sem nenhum desencadeante aparente. Eventualmente, o que percebia era uma ótima sensação quando seus pensamentos e sentimentos eram harmonizados em êxtase profundo. 

Por causa destes sintomas Dostoievski procurou médicos, que lhe deram o diagnóstico de epilepsia. Todas suas percepções que invadiam a sua consciência foram corretamente reconhecidas como fenômenos epiléticos. Isto só foi possível porque à época do autor florescia a neurociência, que impulsionava a medicina científica. 

Descobertas forçaram o divórcio entre o conhecimento e a superstição. Assim, as convulsões passaram a ser reconhecidas como crises epilépticas e não mais como possessões demoníacas. Foi nesse período histórico que pesquisadores revelaram a natureza elétrica das convulsões. Também definiram o que é epilepsia: uma excessiva e desordenada descarga de eletricidade do tecido nervoso cerebral.

Os neurocientistas pioneiros descobriram que, conforme a atividade elétrica epiléptica se alastra pelo encéfalo, funções cerebrais são corrompidas criando diversas expressões clínicas. Como estas funções são sediadas em regiões encefálicas específicas, é possível reconhecer qual área cerebral está sendo afetada pela crise epiléptica através da análise das manifestações clínicas.

Explicarei por um exercício de imaginação. Pense em Dostoiévski saltando no tempo até ser atendido por um neurologista desta geração. Após ouvir e examinar o célebre russo, o médico inferiria que no cérebro do criativo homem existe um foco epiléptico próximo às áreas controladoras de emoções. Por isso, as referências à angustia e ao êxtase. Mas este foco deve estar também próximo às áreas encefálicas responsáveis pela retomada de memórias visuais, daí as cenas alucinadas.

"Humilhados e Ofendidos", "O Idiota", "Os Irmãos Karamazov" são livros de Dostoiévski em que se encontram referências à epilepsia. Não consigo evitar a especulação: como seriam esses livros se seu autor tivesse recebido um tratamento eficiente contra sua doença? Provavelmente Machado de Assis diria que outros bons temas surgiriam e trariam outros tópicos. Este grande autor também era epiléptico, mas não deixou em seus livros alusões sua doença.

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