Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A realidade assentada em bifes de fígado

Deficiência de vitamina B12, abundante em tecidos hepáticos, pode levar ao delírio

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Um experiente homem passou a reclamar aos seus filhos sobre seu vizinho, do andar de cima. Dizia que em qualquer cômodo que estivesse escutava o molecote pisoteando de forma provocativa e barulhenta. O incomodado homem sabia que o rapaz o monitorava, embora não tivesse ideia de como. 

De tão veemente que eram suas aflições, seus filhos foram convencidos a vasculhar sua morada em busca de algo que incriminasse o sádico vizinho. Obviamente, nada encontraram, fato que não impediu a desconfiança do ansioso homem de piorar e se estender aos filhos.

Por fim, o senhor paranoico se escondeu em um canto de seu apartamento em fuga dos esfarrapados que apenas ele enxergava. Descontrolado, foi internado em um hospital.

"Delírios de Catarina" (2017), obra de Caetano Dias, que mostra diversas cabeças de olhos fechados
"Delírios de Catarina" (2017), obra de Caetano Dias; carência de vitamina B12 pode causar delírio - Andrew Kemp/Divulgação

Acomodado em um quarto hospitalar, o recém-paciente ameaçava aos chutes todos que se aproximavam, inclusive o neurologista que o analisava. O médico estava pessimista, pois a ruptura com a realidade, tal qual agora testemunhava, geralmente prenuncia um destino terrível. 

Entretanto, o médico se reteve a eufemismos ao anunciar à família que iria descobrir o melhor tratamento logo que tivesse os resultados de exames. Intimamente, desconfiava que “melhor tratamento” significaria pouca coisa. 

Acompanhado por uma dedicada enfermeira, cujo olhar transbordava compaixão, o médico concentrou-se em checar exames. Ela, ao balançar seu coque, questionava: ele vai melhorar? Vai nos chutar novamente?

O neurologista, com duas palavras, respondeu que ainda não possuía as respostas. Naquele instante conteve sua vontade de pedir a ela uma reza que pudesse adiantar em milagre. Ele daria apenas respostas negativas, mas estava ciente de que todas seriam incompletas, por enquanto. Então resistiu às precipitações e se concentrou em terminar a análise de exames, alguns muito caros e de nomes complicados.

Um hemograma, exame que mostra a quantia de glóbulos vermelhos e brancos que até o mais modesto laboratório consegue realizar rapidamente, deu uma pista e anulou as premissas nada alentadoras.

O paciente estava com leve anemia, em outros termos, um pouco menos de glóbulos vermelhos em seu sangue. Entretanto, esses glóbulos eram maiores do que normalmente deveriam ser, um indício de que o paciente estava carente de vitamina B12. A ágil enfermeira foi cuidar da reposição do micronutriente prescrito. Meses depois, o paciente havia recuperado sua crítica. 

O conhecimento usado pelo neurologista para solucionar o caso teve um pilar construído em 1849, ano em que o médico Thomas Addison descreveu, pela primeira vez, uma doença fatal que provocava palidez, fraqueza e piora progressiva da saúde. Estudos posteriores revelaram que os pacientes com aquela doença possuíam anemia com glóbulos vermelhos volumosos, tal qual o nosso bom homem. Essa doença ganhou o nome de anemia perniciosa.

Não tardou para que outros médicos identificassem problemas neurológicos que esta afecção provocava, como perda da coordenação motora, do tato e da força. A cura foi descoberta apenas no século 20, através da ingestão de extrato de fígado.

Finalmente, foi isolada a vitamina B12, nutriente abundante nos tecidos hepáticos, cuja deficiência provocava a doença. Outras manifestações clínicas de carências de vitamina B12 foram depois descritas, incluindo o delírio.

Não pense que tal conhecimento ascendeu retilineamente por degraus pavimentados por sucessivas descobertas científicas. A evolução surgiu emergindo de uma fumaça de confusão.

Note que até meados do século 20 não havia exames para confirmar suposições diagnósticas e, para piorar, qualquer diagnóstico era atribuído a formas avançadas de sífilis, já que essa infecção pode causar exatamente os mesmos sintomas da anemia perniciosa, assim como outras tantas moléstias nem conhecidas à época.

Logo, determinar um diagnóstico não era tarefa fácil. Para aumentar a confusão, observações clínicas erradas ou fajutas forjavam como reais doenças inexistentes, ao passo que, frequentemente, doenças verdadeiras eram detalhadas imprecisamente. Essas falhas obrigavam estudiosos a revisarem seus pares, por trabalhosas décadas, em busca de consensos que surgiam a muito custo.

Portanto, muita luta intelectual aconteceu para que hoje possamos reconhecer que nossa percepção de realidade depende de um diminuto nutriente presente em pequenas quantidades em nosso corpo e bem armazenado no fígado.

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