Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Eu e minha vertigem

Um acidente de bicicleta balançou minha visão de mundo

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O passeio de bicicleta transcorreria bem, não fossem as fortes chuvas terem feito dos trechos da trilha, um lamaçal. Minha imperícia também contribuiu para o previsível, mas antes de tudo, indesejável percalço. Enfim, levei um vistoso tombo, cujo término foi a minha cabeça contra uma raiz. Estive cego por alguns instantes, com a impressão de que desmaiaria, mas não aconteceu. Lembro-me vagamente dos acontecimentos imediatos após a queda, mas recuperei-me bem. Tomado por prudência, continuei o percurso até concluí-lo.

Na manhã seguinte, ainda de folga, decidi pela segura natação, opção por risco zero de queda. Mas a cautela não preveniu outro mal momento, depois de uma virada vi tudo ao meu redor girar. Eu enxergava o fundo da piscina trocar de posição com a superfície sucessivamente, uma confusão visual do sob com o sobre. Não havia lógica, mas temi escorrer pela piscina rodopiante. Como defesa, firmei meus pés enquanto apoiava minhas mãos na borda. O tato me orientava, a visão fazia o contrário. Essa dissociação me dava náuseas.

Imaginei que sofria um acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI), uma área específica de meu cérebro, incumbida em me dar equilíbrio, morria. Esse temor era influenciado por antigas reminiscências minhas.

homem se segura para não cair de prédio
James Stewart como o personagem Scottie no filme "Um Corpo que Cai" - Reprodução

Certa vez, havia socorrido uma mulher jovem que sofrera um AVCI enquanto ela treinava natação. Recordei-me de sua expressão assustada, da piora abrupta até a sonolência profunda enquanto era levada para o hospital. Felizmente, houve um final feliz, o tratamento foi adequado e ela conquistou excepcional recuperação. A jovem havia contado com um neurologista à beira da piscina, que talvez, tenha contribuído para sua melhora. Mas o doente da ocasião seria eu, o neurologista, que estaria cercado por palpiteiros atrapalhados. Antevi um monte de pessoas ao meu redor, jogando álcool em meus pulsos e me abanando, uma perda de tempo.

A ansiedade foi breve, pois a vertigem desapareceu e a piscina se acomodou em seu devido lugar. Meu raciocínio, também acomodado, trouxe a razão para eu entender o ocorrido. A tontura foi provocada pelo movimento brusco da virada, eu não sofria um AVCI. Horas depois fiz um teste em minha cama, para fins diagnósticos. Sentado sobre o leito, virei minha cabeça para o lado direito e deitei-me, e eis de novo as circunvoluções. Meu quarto rodava, mas desta vez foi divertido. Já sabia o que acontecia comigo. O meu problema era comum, de nome pomposo e muito autoexplicativo: vertigem paroxística posicional benigna (VPPB).

Dentro de cada um de nossos ouvidos há um precioso órgão, o labirinto. Essa delicada estrutura sinaliza para nossa consciência a posição de nossa cabeça em relação ao corpo e ao espaço. Sim, meu querido e desavisado leitor, para o cérebro não há nada óbvio. Se você sabe que sua cabeça está aí penduradinha acima do pescoço, inclinada ou não, é porque há sistemas neurais que avisam a sua consciência que assim está.

O labirinto faz parte de um desses sistemas. Em seu interior há um líquido, posicionado em diferentes compartimentos. Qualquer rotação da cabeça desloca o fluído diferentemente em cada um dos compartimentos. Células especiais sensíveis a mudanças hidrodinâmicas, transformam o mover do líquido em informações, e as encaminham a vários centros encefálicos. Inclusive, núcleos controladores de movimentos dos olhos. Assim, se o crânio se move para a esquerda, os olhos movem-se para a direita, na mesma velocidade, sem a interferência da consciência. Esse aparato torna possível fixarmos nosso olhar em algo de interesse, mesmo que movamos rapidamente sobre terrenos muito irregulares.

Meu tombo de bicicleta cisalhou meu labirinto. Como consequência, formaram-se grumos de restos celulares em seus compartimentos. Esses se consolidaram em cálculos, que impediam o fluxo labiríntico. Assim, a rotação da minha cabeça desencadeava um balançar não harmônico de líquidos, em resposta, meus olhos moviam-se enquanto deveriam estar parados. O remelexo ocular perdurava até os líquidos voltarem ao repouso, mas enquanto se sacudiam, eu via o mundo sambando.

A razão de minha VPPB foi o acidente, mas os cálculos podem se formar por razões desconhecidas, aliás, é assim na maioria das vezes. Mas isso não importa para a cura. Quase sempre uma série de movimentos com a cabeça é suficiente para jogar os grumos para fora do labirinto, e acabar com o problema. Foi o que fiz e assim, tive a cura.

Este meu texto não é tão original assim. Outro neurologista já descrevera a própria VPPB, também após um acidente. Mas não param por aí minhas redundâncias. A minha experiência mostrou, mais uma vez, como uma informação sensorial enganosa, faz a mente se confundir e ter a impressão, e o apego ao absurdo —a piscina rodando. Sem deixar de demonstrar que frequentemente evocamos recordações inadequadas para o enfrentamento de circunstâncias incomuns, como eu ao pensar em AVC. São muito delicados os mecanismos cerebrais construtores do que acreditamos ser a realidade, uma construção rica, habitualmente precisa, mas às vezes, muito frágil.

Referência:
1. Mumford CJ. Post-traumatic benign paroxysmal positional vertigo. Pract Neurol. 2019 Aug;19(4):354–5.

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