Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A mulher apática que mal caminhava

Ninguém conseguia descobrir o problema dela, até que uma jovem neurologista entrou no caso

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Uma mulher de 28 anos foi internada em um hospital por estar muito enfraquecida. Um contraste com sua condição de meses atrás, quando estava bem, muito bem, aliás. Havia até prescindido da terapia contra sua diabetes, entendendo seu corpo como invulnerável. Mas tal impressão não durou, sua imprudência fez o açúcar de seu sangue elevar muito, com consequências físicas evidentes. Com temor, retornou às injeções de insulina. Enquanto os exames de monitoramento do diabetes se readequavam, surpreendentemente, ela enfraquecia. Sofria náuseas persistentes, queixava-se de uma constante dor abdominal, em alguns momentos muito intensa. Sentia queimações e formigamentos dos pés aos joelhos e em suas mãos. Também não conseguia se alimentar adequadamente. Desta forma, perdia as forças, mal conseguia segurar uma caneca cheia de água e só caminhava se devidamente amparada.

Na enfermaria, ela foi submetida a uma vasta investigação laboratorial. Alguns exames vieram alterados, mas nenhum resultado revelou a causa daqueles crescentes problemas. O que restou à jovem foram diagnósticos genéricos, como gastrite, doença dos nervos, descompensação diabética.

Mulher com uma mão na testa
Mulher sofre com dores - fizkes - stock.adobe.com

Apesar da situação dramática, a mulher parecia desencaixada de sua condição, como se não se importasse. Não fazia perguntas aos médicos e enfermeiros, nem demonstrava interesse pelas explicações insatisfatórias que eram dadas. Respondia evasivamente aos médicos, com monossílabas. Havia deixado de colaborar com as terapias de reabilitação. Eventualmente se emocionava, com choros repentinos e muito curtos. Teve quem recomendasse se esforçar, se ajudar, ser proativa e mais uma lista de conselhos motivacionais; força de vontade seria suficiente para a recuperação da saúde. Mas, cá entre nós, a agrura não seria resolvida com otimismo.

Mais preocupada do que otimista, uma jovem neurologista se lembrou de que há uma doença capaz de provocar dores abdominais e disfunções de nervos: a rara porfiria, uma moléstia causada por falha genética. O diagnóstico é quase mágico, a urina de acometidos, se por horas for exposta à luz, assume cor violeta. Infelizmente, muito tempo abaixo do sol a urina da paciente insistia no monótono amarelo citrino. Outros exames laboratoriais enterraram de vez a hipótese de porfiria.

Frustrada, a médica decidiu conversar com um neurologista das antigas, muito experiente em doenças raras, incluindo a porfiria. O colega mais velho não lhe deu o diagnóstico. Mas a alertou sobre o óbvio: haveria algo difuso no corpo da paciente; deveria seguir este mote para alcançar o diagnóstico. A neurologista, sem a resposta desejada, julgava ter perdido seu tempo com a conversa. Não percebia que fora tratada como uma igual e sutilmente aconselhada a não se portar mais como o aluno dependente do tutor.

No outro dia, esqueceu a decepção e enfrentou a pergunta corajosamente: o que atacaria o organismo difusamente? "Intoxicação". A palavra surgiu em sua mente após longa reflexão. Estaria diante de um caso de envenenamento? Para começar a nova investigação solicitou dosagens de metais pesados no sangue, ciente de que a análise levaria uns dias para se completar. Fez perguntas aos familiares da enferma sobre hábitos dela, depois de os informar sobre a nova suposição. Entretanto, nenhum dos parentes revelara algo suspeito.

Os resultados vieram. Havia grande concentração sanguínea de chumbo. Com o achado em mãos, confrontou os familiares da paciente: "há uma informação perdida, encontrem por favor". Com certeza, o metal no sangue não era um castigo do acaso ou de algum demônio vingativo.

Desta vez, angariou colaboração mais eficaz e assim uma tia da jovem hospitalizada trouxe até o hospital um vidrinho que estava na gaveta do quarto da enferma. A moça ingeria várias gotinhas do líquido daquele frasco, com a crença de que melhoraria de sua diabetes, desde quando abandonara a insulina. O produto importado, com menções à terapia ayurvedica, trazia extrato de ervas enriquecido com cromo e chumbo. O hábito não fora mencionado, pois ninguém desconfiou de um produto rotulado como natural, consideravam a informação irrelevante.

O chumbo era a causa de sua apatia, labilidade emocional, dores e fraqueza. Felizmente existe a terapia contra a intoxicação plúmbica.

Referências:

1. Willett LL, Bromberg GK, Chung R, Leaf RK, Goldman RH, Dickey AK. Case 38-2021: A 76-Year-Old Woman with Abdominal Pain, Weight Loss, and Memory Impairment. N Engl J Med. 2021 Dec 16;385(25):2378–88.

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