Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Os sonhos lúcidos e a neurologia

Eles podem melhorar saúde mental e ajudar a entender doenças neurodegenerativas

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Até parece uma alucinação, quando se reconhece a inexistência de tudo ao redor, e decifra-se o cenário à volta como uma vívida criação mental. Embora todos os componentes aí construídos possam influenciar fortemente os sentidos, não se ignora a existência de um mundo externo e real, silenciado, que não atualiza a consciência.

Parece, mas não é alucinação, trata-se de uma modalidade de sonhos, os sonhos lúcidos. Exceções raras e surpreendentes, que fazem alguém ter a consciência de estar sonhando nos exatos momentos em que assim está. Quem alcança esse estado é capaz de se recordar das circunstâncias da vigília, de pensar claramente, de "agir" de acordo com as reflexões e até mesmo de seguir um roteiro, criado antes de dormir.

Ilustração de uma mulher branca e ruiva, deitada na cama de olhos abertos. Ao fundo, um gato laranja sentado na janela olha para a mulher.
Reprodução do clipe 'L'anima Mavì'', de Francesca Badalini - Francesca Badalini no YouTube

Os sonhos lúcidos geralmente causam mais boas sensações do que os outros. Fácil supor uma razão, pois o sonhador é capaz de controlar o enredo sonhado, um bônus da lucidez a transformar o sonho numa opção de diversão. Mas pode ir além do hedonismo, tal controle pode mitigar o sofrimento causado por pesadelos recorrentes, inconvenientes comuns aos deprimidos, aos que enfrentam o transtorno de estresse pós-traumático e aos ansiosos. Outros possíveis benefícios: aliviar o mal-estar causado pela insônia, criar oportunidade de ensaio para uma futura atividade e fornecer inspiração criativa. O sonho lúcido é um traço que pode ser aprendido e treinado.

Aqui vai a receita. Uma das primeiras técnicas requer uma excelente recordação dos sonhos. O ideal é se lembrar de detalhes de um sonho tão logo interrompido pelo despertar e identificar os absurdos que só acontecem nos fenômenos oníricos. Em seguida, novamente, rememora-se toda a ação sonhada, com atenção especial às sequências das estranhezas. Com disciplina, durante um sono, será possível reconhecer alguma inconsistência bizarra sonhada, a pista que trará a consciência. Bastará, então, editar o seu sonho lúcido.

Se você conseguir controlar seu sonho, terá outro trunfo, poderá também decidir ficar no sono profundo, ao menos por um tempo, enquanto analisa algumas intromissões ambientais que o acordariam. Um estudo multicêntrico publicado em 2021 na influente revista Current Biology demonstrou que "experientes" sonhadores lúcidos conseguem responder a perguntas, por meio de movimentos oculares ou mímicas faciais, enquanto continuam a dormir e a sonhar. Praticamente os voluntários resistiam em não acordar, embora se comunicassem com o meio, elaborando complexos mecanismos de consciência.

Os sonhos lúcidos foram definidos como um estado híbrido, meio sono meio despertar. E, diferentemente dos sonhos triviais, aconteceria por haver pleno funcionamento dos lobos frontais, sítios especializados em fazer a emersão da crítica, lógica e razão. Atualmente, dados laboratoriais mostram que o cérebro atinge níveis de ativação acima da média durante os sonhos lúcidos, mas esta atividade reside dentro de intervalo normal de sono. Ou seja, não existe o estado híbrido, o sonho lúcido é puro sono. Não acontece às custas da ação de uma restrita área cortical encefálica. Pelo contrário, desponta por meio de uma apropriada difusa atividade cerebral.

Estudos sobre os sonhos lúcidos, sobre seus potenciais usos terapêuticos ou meramente recreativos, suas bases fisiológicas podem nos trazer informações preciosas sobre outros fenômenos do sono. Conhecimentos que possivelmente ultrapassarão o domínio destas ilhas de lucidez do dormir, e impactar nosso entendimento sobre certas doenças degenerativas. A doença de Parkinson, por exemplo, muitos anos antes de provocar seus sintomas mais reconhecidos, como tremor e rigidez, pode causar aumento de frequência de pesadelos, sonhos vividos e agitação motora durante os sonhos. A ciência acerca dos sonhos lúcidos poderá descobrir dados sobre estas manifestações.


Referências:

1. Baird B, Tononi G, LaBerge S. Lucid dreaming occurs in activated rapid eye movement sleep, not a mixture of sleep and wakefulness. Sleep. 2022 Apr 1;45(4):zsab294.

2. Stumbrys T. Dispelling the shadows of the lucid night: An exploration of potential adverse effects of lucid dreaming. Psychol Conscious Theory Res Pract. 2021; Advance online publication. https://doi.org/10.1037/cns0000288

3. LaBerge S, LaMarca K, Baird B. Pre-sleep treatment with galantamine stimulates lucid dreaming: A double-blind, placebo-controlled, crossover study. PloS One. 2018;13(8):e0201246.

4. Mallett R, Sowin L, Raider R, Konkoly KR, Paller KA. Benefits and concerns of seeking and experiencing lucid dreams: Benefits are tied to successful induction and dream control. SLEEP Adv. 2022 Sep 7;zpac027.

5. Konkoly KR, Appel K, Chabani E, Mangiaruga A, Gott J, Mallett R, et al. Real-time dialogue between experimenters and dreamers during REM sleep. Curr Biol CB. 2021 Apr 12;31(7):1417-1427.e6

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