Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente câncer

Um caso de curandeirismo improvisado

A medicina moveu-se e ainda se move aos trancos e barrancos

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Refiro-me a um jovem que faz parte de um grupo cujos membros vivem experiências muito diferentes das nossas e têm conhecimentos dos quais não sabemos. Vivem privados de recursos e de informações, aos quais nós temos acessos.

Eles falam o que têm a dizer à custa de um vocabulário enxuto; como consequência, vocábulos e expressões se desdobram em mais significados do que a semântica original. Diferente da minha suposição, "em cima de" não explica que algo está sobre outra coisa, mas anuncia relação de causas e efeitos. "Em cima da cara dele, fiquei desconfiado ", traduz a ideia de que a aparência e a atitude de outrem transmitem dúvidas. O advérbio onde deixa de descrever apenas lugar, mas tempo, razão, causa, "fiquei nervoso, é onde passo mal".

O homem chega ao médico em cadeira de rodas, incapaz de mover os membros inferiores, insensível dos mamilos para baixo. "Faz tempo" é a sua concisa e habitual resposta a atender as perguntas sobre a cronologia dos fatos que romperam sua saúde. Quem vive como ele tem a impressão de que o tempo demora mais a passar, pois todos os dias são quase iguais, a mesmice anula as referências temporais.

Um evento pode ter acontecido antes de algo, porém é recordado como se tivesse ocorrido depois.

Logo, coletar o suceder dos acontecimentos é deveras trabalhoso. A narrativa suposta pelo médico concebia que o paciente sofria de dores crônicas nas costas. Assumiu que os pares do enfermo reconheceram deste o sofrimento. Em demonstração de altruísmo, também de egoísmo, foram ajudá-lo. Ganha notoriedade aquele que acertou o método do alívio. Esticaram-no, ergueram-no, mas não houve redução do incômodo. Sem desistirem, subiram em suas costas, com a pretensão de alinhar as vértebras. Essas estripulias foram executadas por dias seguidos, assim o médico imaginou.

Tudo ia mal e piorou. Subitamente o rapaz sofreu uma intensa e abrupta elevação da dor. A situação foi extrema, teve vômitos e um desmaio. Após acordar já não movia mais as pernas, estava paraplégico. Semanas ou meses depois conseguiu uma consulta com o médico que reconstituía os fatos. O profissional solicitou uma ressonância da coluna. O exame realizado muitas semanas depois revelou a causa do transtorno: um enorme hematoma dentro da coluna que comprimia a medula nervosa.

Sangramentos dentro da coluna vertebral são raríssimos e quando ocorrem é comum um traumatismo ter sido a causa. Provavelmente as estripulias sobre as costas de nosso personagem foram a razão da hemorragia, portanto das sequelas permanentes. O grupo de pessoas acostumado a improvisar criou o esboço de uma desastrada medicina e um terrível efeito colateral.

Imagem de coluna feita por meio de ressonância magnética
Imagem de coluna vertebral feita por meio de ressonância magnética - Bruno Di Muzio/Radiopaedia.org

Hipócrates é considerado o pai da medicina científica. Atribui-se a ele a separação das práticas medicinais da magia, da superstição e dos rituais sacerdotais. Os conceitos que cunhou uniam a filosofia a uma protoforma de ciência. Suas ideias tornaram-se os alicerces para o desenvolvimento do que temos hoje para enfrentar as doenças. O primeiro médico vivia em um ambiente em que a boa argumentação era bem-vinda e palavras eram inventadas para descrever as novas concepções sobre a natureza.

Mas o caminho da prática fundada pelo filósofo grego não foi sempre virtuoso. A medicina moveu-se e ainda se move aos trancos e barrancos. A teoria hipocrática previa a saúde como o equilíbrio dos quatro humores corporais: sangue, bile, bile negra e fleuma. Dessa forma, as doenças eram tratadas por êmese, enemas, sangrias, jejuns e outras ações, todas propostas para restabelecer o balanceamento dos fluidos humanos; mas na verdade mais faziam mal do que devolviam a higidez.

Embora Hipócrates tenha preconizado o raciocínio para a clínica, seus seguidores o veneravam e não raciocinaram sobre as inconsistências de seus ensinamentos. Os seus preceitos eram aceitos como dogmas e ultrapassaram a Idade Média, ainda que misturados com uma medicina popular. Mais de dois milênios separam a morte de Hipócrates ao nascimento de Ignaz Semmelweis, médico que provou que lavar as mãos em maternidades reduz riscos de morte por infecção.

E já sabemos que nada é tratado com pulos no dorso.

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