Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Palavras que curam; obrigado Natalia Pasternak e Carlos Orsi

O livro escrito pelos dois faz o favor de chamar as provas ao debate

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Natália Pasternak elevou a discussão sobre o enfrentamento à pandemia de Covid-19, em oposição à pressão hostil e às ideias rasas, que não deveriam estar, mas estão na história recente.

Ela novamente ganha cena devido às provocações deixadas em seu novo livro "Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério", também assinado por Carlos Orsi. Na obra, os autores defendem que psicanálise, acupuntura, homeopatia e outros compilados de pensamentos são pseudociências, com argumentos baseados em evidências. A linguagem ousada incitou críticas, em especial feitas por muitos que cuidam da psicanálise, ao menos foi assim que eu percebi. O livro é um convite para o debate. Caso discorde das conclusões redigidas, prove o seu ponto de vista.

Contra-argumentarei o casal com evidências, seguindo um método. Mandei mensagens para meus amigos médicos psiquiatras, com as diretas perguntas: você acredita na eficácia da psicoterapia, sim ou não? Você conduz psicoterapia?

Criei um score: um ponto caso o psiquiatra não atue como psicoterapeuta mas concorde com os benefícios da prática; meio ponto caso concorde e atue diretamente com a intervenção. Um ponto negativo se acredita que psicoterapia é perda de tempo.

Infelizmente, muitos desconsideraram minha enquete. No final, de 32 psiquiatras arguidos, apenas 14 psiquiatras participaram. O score final, 8. Todos os que responderam foram favoráveis à psicoterapia, Apenas dois não atuavam como psicoterapeutas, um deles trabalha exclusivamente como perito, e outro divide suas atividades entre prescrição e a pesquisa médica.

Tenho, portanto, uma evidência a favor da psicoterapia: mensurei cientificamente a opinião de experts, ou seja, de médicos que tratam de doenças da mente. E não precisei escrever epistemologia, hermenêutica, Emmanuel Kant, Augusto Comte. Mas hei de lhe lembrar, imprescindível leitora, de que opinião de expert como prova é a evidência mais fraca que existe. Embora frequentemente seja o único apoio de um médico para tomar uma decisão. Além disso, meu método é ruim, sem tratamento estatístico e assentado em uma amostra pequena.

Ilustração de Pogo mostra duas mulheres. Uma delas está deitada em um divã rosa. A outra aparece sentada numa cadeira lilás, logo atrás da primeira. Ambas são negras. A da cadeira veste vestido azul, colares e pulseiras dourados e tem plantas cobrindo o rosto. A que está deitada usa vestido amarelo e sapatos de salto alto vermelhos. Ela também tem parte do rosco coberto por plantas e flores.
Pogo

Suponhamos que eu me chamasse Franz Ferdinand e fosse professor titular de psicanálise da Hipotética Universidade de Graz, e tivesse um amigo, chamado Gavrilo Princip, chefe da mesma disciplina na Faculdade Imaginária de Obljaj, na Bósnia. Nesse caso, eu poderia fazer algo muito melhor.

Seria possível me associar ao meu colega para homogeneizar nossa disciplina além de fronteiras, avaliar o conhecimento dos nossos alunos e caracterizar habilidades fundamentais a serem dominadas por todos aqueles psicanalistas que formarmos. Então, em um lugar onde há sofrimento, poderíamos mensurar o impacto de nossos métodos psicanalíticos e comparar com o efeito de outras práticas das quais não orientamos, como suporte religioso, atividades físicas ou artísticas.

Pesquisadores independentes enumerariam número de suicídios, prisões, violência, abuso de drogas, divórcios, permanência no emprego. Quantificariam as desistências e descobririam as razões do abandono.

Um trabalho que cansa só de pensar. Arriscado, entretanto condizente com o desafio que é tratar da saúde mental. Sem ter que escrever epistemologia, hermenêutica, Emmanuel Kant, Augusto Comte, poderia trazer a prova de que o casal composto por Natália e Carlos desafiam. Ou rever meu método para corrigir erros. De qualquer forma, traria avanços de que nós, humanos, precisamos. Muitas vezes, provar algo cientificamente não é elementar, e quase sempre requer um esforço tremendo.

Com certeza, você, leitora atenta deve estar quase desistindo de me ler, pois já percebeu um erro que venho cometendo. Mas irei corrigi-lo antes de sua desistência. Eu usei os termos psicoterapia e psicanálise sem explicar que não são como sinônimos.

A psicanálise pode ser definida como uma teoria, não uma técnica, que teve em Sigmund Freud um de seus fundadores. Diferentes técnicas são aplicações dessa teoria, graças às fragmentações e dissidências da conduta freudiana. Como consequência, há modos diferentes de várias escolas em ligar conceitos à prática, complicação que borra a pretensão de psicanalistas em obterem status científico para a sua ação. Alternativamente, a psicanálise pode ser compreendida como a primordial forma de psicoterapia, que preconiza associações livres para interpretações de falas, desejos, memórias e sonhos, com o intuito de alcançar a raiz de sofrimentos psíquicos, os conflitos internalizados, entre a consciência e o inconsciente. Freud não foi cuidadoso em buscar rigor científico para essas suas ideias. Mas ensinou seus alunos a escutarem os pacientes com calma e atenção, como nunca havia ocorrido antes.

Psicoterapia, por sua vez, é um termo mais abrangente, é a terapia pela fala, o diálogo entre terapeuta e paciente. E palavras curam. O movimento que provou essa assertiva foi iniciado na década de 1970 pelo psiquiatra Aaron Beck. Ele discordou de Freud e entendeu que a raiz do sofrimento está na cognição e no comportamento, não no conflito "consciente versus inconsciente. Por exemplo: para Beck, a depressão se estrutura graças a padrões cognitivos de autodepreciação, expectativas inalcançáveis e fragilidade emocional. A terapia cognitivo comportamental, a solução criada por Beck, almeja mudar a estrutura de pensamento e as atitudes. O psiquiatra expôs seus conceitos à ciência e foi bem-sucedido. Seu trabalho foi desenvolvido por outros, surgiram mais evidências da eficácia e dos limites da terapia cognitivo comportamental.

A partir de Beck, cientistas atestam a eficácia de várias formas de psicoterapia. Por exemplo, contra o transtorno borderline e a depressão, em artigos publicados na revista New England Journal of Medicine, o periódico médico mais influente do planeta. Neurocientistas, alguns psicólogos também, demonstraram na revista Brain, da Universidade de Oxford, a eficiência de psicoterapia contra o vício em internet e insônia. E nem precisaram escrever epistemologia, hermenêutica, Emmanuel Kant, Augusto Comte.

O livro de Natalia e Carlos faz o favor de chamar as provas ao debate. Mas não sei se o livro é um sinal de que estamos mais preocupados com a ciência. Ou, o oposto, um puxão de orelhas literário para nós que continuamos fugindo da razão.

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