Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Luís Francisco Carvalho Filho

Fábricas de desacato

Sem filmagem, prevalece a versão policial, falsa ou verdadeira

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A rua é ambiente propício para conflitos verbais entre autoridades e cidadãos. Autoridades sentem-se na obrigação de abordar, ainda que sem justificativa, de forma adequada ou abusiva, e cidadãos não se conformam com a invasão de seus espaços de liberdade e privacidade.

O caso do desembargador filmado na praia de Santos sem máscara, primorosamente observado pelo olhar atento dos colunistas Marcelo Coelho e Conrado Hübner Mendes, gera repugnância porque o linguajar de superioridade que o magistrado destila e os gestos de desafio viralizaram nas telas dos computadores e nos noticiários.

Em julgamento virtual recente, por maioria de votos (9 a 2), o Supremo Tribunal Federal declarou válido o artigo 331 do Código Penal, que estabelece pena de seis meses a dois anos de detenção para o “desacato” de funcionário público no exercício da função ou em razão dela.

A OAB sustentava na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental existir desequilíbrio de forças entre funcionário e homem comum.

Desacato é manifestação de menosprezo pela função pública e não há régua ou modelo prévio capaz de distinguir a ofensa da liberdade de expressão —ainda que exercida de maneira injusta ou agressiva.

A intenção dolosa do agente é outro pressuposto da punição. Momentos de descontrole emocional ou de revolta podem eventualmente descaracterizar o elemento subjetivo do menosprezo, mas o preconceito de raça ou gênero, externado pela pessoa atingida na abordagem, é capaz de intensificar a carga acusatória.

Além do servidor pessoalmente humilhado, o desacato afeta a credibilidade da função pública. No Brasil, contudo, a resistência a medidas editadas pelo poder público para reduzir o contágio do coronavírus, por exemplo, que o guarda de Santos fiscalizava, é estimulada pelo próprio presidente da República.

Na galeria dos agentes de Estado, juízes têm mais prestígio e mais vantagens corporativas que policiais, mas não há relação hierárquica entre eles: na rua, lembra o ministro Marco Aurélio, do STF, a autoridade é o guarda.

O caso do desembargador fortalece a função pública. Como um folhetim, o bem vence o mal: o guarda humilde resiste às provocações do exuberante magistrado, cumpre o dever de autuar e se transforma em herói, ainda que efêmero.

O celular é instrumento inestimável para registro histórico dos acontecimentos e para exercício da legítima defesa. Sem a gravação da cena, não poderia prevalecer versão alternativa e favorável ao desembargador, vítima de uma “arbitrariedade” do guarda de rua?

Em outras direções, câmeras registram policiais norte-americanos e brasileiros sufocando com o joelho manifestantes e averiguados.

A equação jurídica reafirmada pelo Supremo é de desequilíbrio porque a doutrina e a jurisprudência conferem à palavra dos agentes civis e militares, no exercício da função pública, presunção de veracidade —que só não prevalece diante de “prova cabal adversa”.

Sem filmagem, sem gravação de voz, sem relato de “testemunhos idôneos”, a versão eventualmente falsa e ardilosa da autoridade vence no recinto dos tribunais.

Desacatos são fabricados nas ruas das cidades brasileiras com alguma frequência. São patrocinados pela mesma banda policial que prepara flagrante de droga, que planta arma na mão de “suspeitos” em cena de crime, que participa de tiroteios temerários e que alimenta os assustadores índices de letalidade.

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