Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Descrição de chapéu Folhajus

Em tragédias naturais, poder público omisso é também suspeito e culpado

Na Turquia, normas de construção foram ignoradas por construtores

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O sistema de punição criminal costuma aparecer no rescaldo das catástrofes. Tragédias naturais contaminam a política, a política contamina a segurança pública.

Com a prisão de mais de uma centena de empreiteiros na Turquia, o governo autocrático do presidente Erdogan se impõe e se protege diante da destruição, direcionando o ressentimento das vítimas para pessoas detentoras de rosto e voz.

Milhares de mortos. Cidades arrasadas. A natureza é implacável, mas alguém tem de pagar com vida, liberdade, patrimônio ou honra. Faz parte de uma tradição milenar.

Se quem constrói estruturas não resistentes a terremotos sofre punição por eventual negligência, imprudência e imperícia ou pelo descumprimento de normas de segurança, o agente do poder público que se omite é também odioso, suspeito e culpado.

O Código de Hamurabi, monumento jurídico esculpido em pedra na Mesopotâmia, nos tempos remotos da Babilônia (1780 a.C.), sistematiza o princípio do "olho por olho, dente por dente" com um modelo exato de retribuição: sugere a pena de morte do arquiteto que construir a casa que ruir, por não ser sólida, se, no acontecimento, morre o proprietário da casa; e se o filho do proprietário morre, condenado à morte será o filho do arquiteto.

Para reconstruir Lisboa depois de horroroso terremoto, seguido de tsunami e onda de incêndios, em novembro de 1755, Pombal, poderoso e notável ministro de dom José 1º (1750-1777), governa com mãos de ferro.

O desafio é gigantesco. Nada sobra. Nem as construções adequadas às normas da época. Limpar escombros. Alimentar sobreviventes. Em nome da saúde pública os cadáveres das vítimas são lançados ao mar, com a permissão do patriarca católico. Conceber um traçado urbano inovador e arejado, que se converteria na belíssima "baixa pombalina".

Naquele momento, pequenos delinquentes do patrimônio ameaçavam mais concretamente a ordem e a paz social do que a livre circulação de construtores relapsos dos tempos passados.

Rui Tavares, autor do ensaio "O Pequeno Livro do Grande Terremoto" (Tinta da China), assinala que o poder público estava mais preocupado com epidemias do que com a ira divina, supostamente lançada contra os habitantes de Lisboa.

A repressão era uma das metas fundamentais da estratégia real. Altas forcas seriam erguidas para justiçar sumariamente ladrões e saqueadores –as cabeças pregadas nas traves, propagandeando para sobreviventes, ao mesmo tempo, sinais de terror e de "emenda aos costumes perversos".

A crise humanitária que sucedeu o grande terremoto do Japão, em 2011, sua maior tragédia desde a bomba atômica, não se acentuou por episódios de saque, criminalidade ou violência. Para espanto dos observadores ocidentais, prevaleceu o exercício radical da disciplina e da civilidade.

Na Turquia, normas de segurança e roteiros técnicos para a construção de imóveis mais resistentes a terremotos foram ignoradas em construções recentes, o que agravou as consequências da tragédia. Mas qual será, afinal, a pena merecida dos construtores?

Paradoxalmente, em países afetados por desastres, os bombeiros são lembrados pela chama heroica, mas a ajuda solidária não chega aos necessitados: é desviada por corruptos, espertalhões e quadrilhas.

No Rio de Janeiro, as milícias se encarregam de construir prédios, sem alvarás, em áreas de risco ou de proteção ambiental.

A próxima tragédia ainda não assombra.

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