Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Pobreza no Brasil faz da quarentena uma tendência dos ricos e famosos

Um dos sintomas do coronavírus é o oportunismo do horror, outro é achar que humanidade vai mudar após a peste

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A quarentena virou tendência de comportamento. O chique é estar de quarentena brincando de aspirador de pó, conversando com plantas, cozinhando brócolis, fazendo ioga e lendo russos. Não fazer quarentena é coisa de pobre, bolsonarista, ignorante e fumante. De repente, o chique é posar de igualdade social. Imitar as empregadas enquanto faz live. Peste “instagramworthy” (peste que vale uma live).

É claro que isso passa ao largo do desespero real e vira uma espécie de gourmetização da peste, criando algo como um surto psicodélico em escala social.

Na ilustração, um rosto com formato de máscara de proteção faz uma selfie
Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

De onde esse povo inteligente tirou a ideia de que o mundo vai mudar depois da peste? A primeira prova de que não vai mudar nada é que os inteligentinhos coronials já estão em ação.

Nunca vi tanto self-marketing se vendendo como se fora amor à vida. E disseram que o mundo não ia voltar ao normal? Já voltou, em parte. A vaidade, o oportunismo, o marketing de comportamento, o mercado dos horrores afetivos, as feministas dizendo que dominarão o mundo, tudo aí, pra quem quiser ver. Alguém já provou que vírus só existe em sociedades patriarcais e carnívoras? Logo coletivos de ciências sociais o farão. Enfim, o ridículo voltou às ruas.

Olhemos de mais perto a sintomatologia. Sempre achei a disciplina de clínica médica fascinante: uma espécie de trabalho de detetive mergulhado em sinais e sintomas pra identificar possíveis causas.

Um dos sintomas do corona no plano cognitivo e intelectual é o oportunismo do horror. Esse já identificamos. Vamos adiante. Outro, também no plano das funções cognitivas, é achar que a humanidade vai mudar depois da peste.

Uma possível explicação para esse sintoma talvez seja o desespero e o tédio que a quarentena gera em nós. É compreensível. Mas a humanidade já passou por inúmeras pestes piores que esta e nunca mudou. Esta é, apenas, a primeira “instagramworthy”.

Depois da espanhola e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão.

A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia.

A epidemia de utopias fala coisas como: vamos respeitar mais os mais humildes. Seremos mais solidários —durante a epidemia, muitos, sim, com certeza, ainda bem, mas passada a peste, a maioria voltará a ser como sempre foi. Os humanistas de quarentena voltarão a fazer lives dos hotéis caros que frequentam. Seremos menos consumistas? Vida mais simples? Como assim? Se até pra escolher comida somos o povo mais chato da história. Um estoicismo gourmet?

O mundo estará mais pobre, provavelmente. Os pobres mais pobres, menos dinheiro circulando. A economia será uma ciência ainda mais triste. Isso dará um baque no debate Keynes x Hayek, em favor do primeiro, grosso modo. Mais gasto do Estado —já está acontecendo. Passaremos por um momento parecido com a reconstrução da economia da Europa pós-Segunda Guerra: foco em diminuição de tensões sociais, com razão. O Estado de bem-estar social nasceu desse foco.

O mundo será mais competitivo ainda, porque mais inseguro. Mecanismos de controle invasivo valorizados agora por tanta gente bacana poderão ganhar ares de maior segurança social e de saúde. A segurança dará de 7 x 1 na liberdade.

O mundo será mais remoto. Mundo remoto é mundo de solitários. As relações entre as pessoas já estão difíceis, agora o serão com as bênçãos dos coronials.

Encaremos os fatos: no Brasil só classe média alta e alta podem fazer quarentena. Só eles têm reserva financeira. A esmagadora maioria da população vai pedir esmola, seja do Estado, seja nas ruas. A pobreza no Brasil faz da quarenta uma tendência de comportamento dos ricos e famosos. Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que eles não comem bolo, já que não têm pão.

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