Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

O 'homem-massa' é o homem médio cheio de ideias fixas sobre tudo

Esse tipo de pessoa não quer ser excepcional, mas exige que todo mundo seja vulgar e se interesse por temas miseráveis

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Quem comeu quem? Quem traiu quem? Qual o último deprimido do Instagram? Quem processou quem por assédio? Qual o último palavrão do Bolsonaro? Onde será o próximo churrasco na laje do Lula? Qual a última dieta da Lua? Quem se reinventou fazendo "mindfulness" no condomínio de multimilionários no interior de São Paulo? Quem descobriu que o veganismo cura câncer? Vai ter golpe?

Você é comunista ou bolsonarista? Quem ganhou milhões em criptomoeda? Qual o chef mais famoso do mundo? Qual o hotel mais exclusivo do mundo? Qual a peça de teatro trans mais revolucionária do momento? No Brasil, o que falta é meritocracia! No Supremo Tribunal Federal só tem ladrão!

A imagem, no formato horizontal, apresenta uma estampa composta por figuras humanas, no mesmo tamanho e em posições diferentes, bem estilizadas, como ícones e se apresentam sem detalhes ou linhas de contorno, em cores chapadas diversas (vermelho, violeta, azul turquesa e verde - sobre fundo creme) - distribuídas na arte, sugerindo movimento. Todas essas figuras, soltas, estão com os braços estendidos e tocam, por trás, nas cabeças umas das outras.
Ilustração para a coluna de Luiz Felipe Pondé publicada neste domingo (18) - Ricardo Cammarota

Todos os enunciados acima são exemplos do "homem-massa" relido pelo século 21. Quem é o "homem-massa"? Aviso aos inteligentinhos que "homem-massa" não é uma questão de gênero, há também a "mulher-massa". Aliás, o inteligentinho é um "homem-massa".

O "homem-massa" é o conceito central do livro "A Rebelião das Massas", de 1930, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), com edição traduzida para o português pela Vide Editorial.

Outro livro do autor, também essencial para entender sua crítica à vulgaridade emancipada —"o homem-massa"— no século 20 é "O que É Filosofia?", fruto de aulas dadas a partir de 1929 em Madri, também publicado no Brasil pela Vide Editorial.

Importante salientar, como diz o filósofo espanhol Julian Marías (1914-2005) no prefácio de 1975 ao "Rebelião das Massas", que consta na edição brasileira da Vide Editorial, que o livro é um livro de filosofia e não de política. Pensar que seja um livro de política é já pensá-lo dentro da histeria em que a política se transformou ao ocupar todos os espaços —a política contemporânea é um dos territórios privilegiados da vulgaridade do "homem-massa", segundo o autor.

Um dos sentimentos ocasionados pelo fenômeno do homem-massa é a sensação asfixiante de que você é sempre obrigado a "fazer política".

O "homem-massa" não é o pobre. Nem a classe operária. Nem os ignorantes de conhecimento formal. O "homem-massa" é o homem médio cheio de ideias fixas sobre tudo. De tanto que a sociedade industrial se abriu ao medíocre, por necessidade estrutural do mercado, a mediocridade se fechou sobre si mesma, tornando-se paradigma social de comportamento e surda a qualquer coisa que ela não entenda.

Daí a máxima do autor que não se trata de achar que o "homem-massa" queira ser excepcional, mas sim que ele exige que todo mundo seja vulgar como ele. Portanto, em toda parte, o mundo ficou com a cara dos enunciados que abrem esta coluna. Os temas que bombam são miseráveis como o "homem-massa".

Há mesmo o "homem-massa" com diplomas e especializações que tem ideias fixas sobre tudo. "Médicos-massa", "advogados-massa", "engenheiros-massa" —para citar alguns diplomas clichês. Leem um artigo nas redes e resolvem os mistérios políticos, culturais, filosóficos do mundo porque são "doutores".

Todos os enunciados dos dois primeiros parágrafos acima são ideias fixas do "homem-massa" brasileiro de hoje, que somos obrigados a engolir por todos os lados.

A própria mídia profissional se afoga nelas. Algumas dessas ideias fixas apenas são assuntos de fofocas, outras são cobranças de posicionamento que, na realidade, nada significam além do fato que você deve se submeter à "opinião pública", que, segundo Ortega y Gasset, é a grande inimiga mortal da filosofia.

Há também o filósofo que trabalha para o "homem-massa", o filósofo que se faz pedagogo, guru, ideólogo motivacional, autor de autoajuda, burocrata.

E qual a função da filosofia como resposta ao "homem-massa", para Ortega y Gasset?

A meditação filosófica verdadeira nos leva a espaços recônditos, solitários, alheios à vulgaridade da opinião pública e de suas expectativas medianas.

A filosofia "não serve para nada", nem para salvar o mundo, essa é sua liberdade única. O esforço intelectual com rigor nos aparta dos gostos do "homem-massa".

O insólito é o lugar para o qual o filósofo se dirige quando não sucumbe à rebelião das massas. A filosofia é uma dramática.

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