Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Crença na capacidade de mudar o mundo pode ser um engano para todos nós

Usar a definição de animal racional para descrever os seres humanos me parece ser uma decisão excessivamente afobada

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A humanidade não está adaptada ao progresso. Evoluiu na escassez e na hostilidade do meio ambiente. O progresso é uma doença evolucionária. A crença na sua capacidade de mudar o mundo para melhor pode ser um dos maiores enganos da história da adaptação da espécie.

O sucesso temporário da técnica nos faz delirar acerca de nossa autonomia racional, moral e política.

Não se trata de nostalgia do passado —o mundo nunca foi um paraíso. Trata-se de constatar que as dificuldades às quais os humanos estavam submetidos podem ter funcionado como controle dos seus delírios e falta de noção de limites.

Título: O homem de carne e osso. A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com lápis grafite sobre papel branco. A imagem, na horizontal, apresenta imagem de personagem deitado de lateral, em posição de encolhido, coberto por um cobertor. Não está identificado o rosto. O fundo da imagem é esfumaçado, com texturas suaves de marcação do lápis. Nas laterais, acima do personagem, há duas asas pretas, uma pequena e outra maior, flutuando -uma em cada lado da ilustração. O aspecto da arte é um pouco sombria.
Ilustração para a coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

Uma vez tendo vivido por centenas de milhares de anos num meio ambiente que lhe era hostil, os humanos ficavam constrangidos em seu poder imaginativo e destrutivo. Com isso não me refiro apenas a riscos ambientais evidentes, refiro-me também à própria noção de progresso técnico, moral e político infinito.

A definição de animal racional para o ser humano me parece excessivamente afobada, afinal, a frágil e recente razão não é algo facilmente aprendido. Pelo contrário, suspeito mesmo que nos seja antinatural, por isso, tamanho esforço para agirmos de forma racional.

Faço aqui minhas as reflexões do filósofo basco espanhol Miguel de Unamuno (1864–1936) na sua obra capital —traduzida no Brasil— "Del Sentimiento Tragico de La Vida En Los Hombres y En Los Pueblos", Alianza Editorial.

Tomando como referência filósofos importantes da tradição ocidental, Unamuno levanta a hipótese de que mesmo eles, figuras conhecidas pela capacidade racional de articulação de conceitos e ideias, criaram sistemas apenas para manifestar seus humores fisiológicos e suas obsessões irracionais.

Por exemplo, a ideia hegeliana de que o real seja racional é incrivelmente inconsistente. Reconstruindo o real a partir de conceitos pensados, Hegel (1770-1831) cria um mundo que não existe, como se este fosse um Lego de peças abstratas.

O real tem pouco de racional e aquilo que nele o é dura pouco tempo e depende de exterioridades incontroláveis pela razão. Limites biológicos, fisiológicos, políticos, sociais, históricos, psicológicos, e por que não, cosmológicos impõem fracassos os mais variados a sustentação racional do mundo.

Empresas pouco devem à meritocracia, vitórias em eleições pouco devem a históricos de boa gestão, decisões humanas pouco levam em conta qualquer forma de coerência moral de comportamento, a vida afetiva é um caos submetido a todas as mais diversas variáveis contingentes.

Impulsos religiosos irracionais condicionam muito mais o dia a dia do que supostas informações científicas. Aliás, falando em ciência, esta está muito longe de se caracterizar pela pureza do método em si —como crê o senso comum—, sendo muito mais objeto de vaidades, políticas institucionais, oportunidades de ascensão nas carreiras dos profissionais, assim como de financiamento em pesquisas.

A intenção kantiana de afirmar a existência de uma razão pura organizando o conhecimento caduca na sua crítica da razão prática —nome técnico para sua ética— diante do fracasso da sua crença de que seres humanos possam mesmo ser éticos a partir de imperativos racionais.

Não é à toa, diz Unamuno, que Kant (1724-1804) se desesperou diante da fraqueza de sua crença na racionalidade da moral. Se não for Deus a regular a ética, de nada adiantam seus imperativos racionais.

Para Unamuno, Hegel e Kant —os pais do discurso filosófico da modernidade, segundo Habermas (1929)— nada mais eram do que obsessivos a sonhar com um mundo limpinho em que a irracionalidade humana seria varrida da face da Terra.

Segundo o filósofo basco, o caráter visceral humano permanece sendo a causa eficiente e definitiva do comportamento dos homens. É o "homem de carne e osso", e sua irracionalidade profunda, conceito central na filosofia de Unamuno, que determinam tudo mais.

A modernidade com sua tara manifesta pela ideia de gestão racional de tudo é um surto psicótico em que a deusa razão nada mais é do que um fantasma nu a nos guiar para lugar nenhum.

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