Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
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Na vida cotidiana real, tudo é mais ou menos e os tons de cinza imperam

Aos pobres, seja pobreza de patrimônio ou de tempo de vida, resta a família, uma das instituições mais criticadas

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O que é mais importante? Dinheiro ou amor? Carreira ou família? Questões como essas são conhecidas como impasses morais ou as tais das escolhas que tanto se fala por aí. "A vida é feita de escolhas."

Pacientes que sofrem com tratamentos de doenças graves falam que descobrem o que é essencial na vida e creio neles. A proximidade da morte possível nos faz entrar numa outra temporalidade, e, com isso, ver as coisas sob uma nova luz, luz essa que apenas a possível morte próxima nos daria.

Situações assim abrem nossos olhos para o quanto perdemos tempo com ninharias do tipo ganhar mais dinheiro, consumir, inventários, odiar os vizinhos, fazer intrigas. Muitas coisas que nos parecem essenciais se dissolvem em pó.

Ricardo Cammarota
Ricardo Cammarota

Mas quem nunca enfrentou um inventário na família não tem o direito de discursar sobre a beleza da natureza humana, compreendida como comportamentos que se repetem há milênios dadas certas circunstâncias —que inteligentinhos com títulos não me venham com o papo furado de que "não existe natureza humana".

Por exemplo, a família tem sido uma das instituições mais criticadas nas últimas décadas pela inteligência pública, da academia a imprensa. Autoritária, patriarcal, opressora. Sob palmas "progressistas", atropela-se a família como desnecessária, a menos que tire carteirinha de família inteligentinha. Restou universo como o evangélico conservador para valorizar a família.

Aos pobres resta a família, seja pobreza de patrimônio ou de tempo de vida.

A verdade é que na vida cotidiana e real, tudo é mais ou menos. Nada é preto ou branco. O cinza impera absoluto. E o cinza é uma cor sabidamente discreta e pouco glamourosa.

Uma das promessas da modernidade –e aqui ela é irmã das formas mágicas de espiritualidade– é a de que a vida iria brilhar para sempre, a partir da máquina a vapor, do telégrafo, e, agora, o gozo com o ChatGPT.

Este tipo de expectativa é claramente infantil. Há algo de imaturo na incapacidade de perceber que existem questões para as quais não há solução. Tudo que podemos fazer é lidar com elas nas suas diferentes manifestações ao longo da duração da própria vida e das contingências que nos são apresentadas.

A verdade é que sem dinheiro a vida sufoca. Come-se mal, a saúde degenera mais rápido –o que não nega o absurdo do custo da medicina, suas máfias e seus seguros-saúde canalhas–, as perspectivas de autorrealização diminuem.

Só quem tem dinheiro para comprar tudo a venda é que pode dizer o que o dinheiro não compra. E os pobres que afirmam coisas assim, o fazem por autodefesa, ressentimento e tentativa de não perder a pouca dignidade que resta a eles.

Mas, o fato é que viver apenas pelo dinheiro pode mesmo destruir uma série de outros vínculos na vida que nos são necessários e que o simples abandono desses vínculos pode implicar em deformações existenciais e de caráter.

O mesmo tipo de ambivalência assola questões acerca da carreira profissional, principalmente entre os mais jovens que são a bola da vez do massacre capitalista. Os sintomas, rapidamente assimilados pelo mercado da saúde mental, comprovam sua etiologia: altíssimas expectativas de todos, pais inseguros, competição violenta.

Viver programando a carreira é uma demanda do mercado de trabalho. Portanto, dizer que você tem "uma escolha" aqui pode ser retórica típica da psicologia positiva, que, na verdade, não passa de psicologia a serviço do marketing da felicidade de consumo.

O fato é que muitas vezes a vida não tem solução plena. Ou a resposta que damos a ela é sempre carregada de efeitos colaterais indesejáveis.

Alguém acha, por exemplo, que uma mulher que aborta um filho o faz feliz? Alguém acha que uma mulher que não aborta um filho, quando queria fazê-lo, não corre o risco de fazer os dois infelizes e se arrepender? Claro, sei que existem pessoas no YouTube que discursam sobre o arrependimento de ser mãe como forma de amor sincero –risadas? A mentira hoje é um método científico.

A vida é um mais ou menos contínuo. Na família, no amor, no trabalho, na política.

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