Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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O Brasil continua sendo uma terra sem lei?

Corruptos que amam Jesus já é um clássico conhecido, o que parece novo é a ideia de um corrupto com consciência social

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Se você perguntar para alguém que faz rachadinha se ele é mau, ele dirá que não. E não só por ser um mentiroso, mas sim porque ele julga a rachadinha que ele prática algo menor, sem importância no esquema maior das coisas.

Ele dirá que trabalha na iniciativa privada, portanto, não está roubando dinheiro do povo, mas sim o dinheiro dos acionistas da empresa. Corrupção no mercado faria parte da dinâmica dos negócios.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada manualmente, estilizada, em técnica nanquim com pincel fino sobre papel branco. A imagem mostra a bandeira do Brasil, em linhas pretas, marcada por 4 mãos nos cantos, que estão segurando fios, que formam a parte do losango da bandeira. Ao centro, 6 antebraços com mãos que se seguram, uma no pulso da outra, formando a parte do globo, sobre fundo cinza.
Ilustração de Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 29 de maio de 2023 - Ricardo Cammarota

Imagine que ele contrate uma empresa de produção de audiovisual —o fornecedor—, e proponha a esta empresa de audiovisual faturar três vezes o orçamento original —que ninguém nunca viu. Um terço para ele —esse um terço é a rachadinha que o fornecedor devolverá para ele uma vez tendo recebido o valor cheio, e os dois terços restantes ficam para o fornecedor.

No Brasil a corrupção é parte de tudo. Mesmo no caso de muitos que pregam a não corrupção. Esta não necessariamente lida só com dinheiro em si, mas com cargos, exercício de poder, sexo em troca de oportunidades de carreira.

É mentira quando se diz que isso acabou. Normalmente, a troca de sexo por espaço de trabalho não aparece como algo imoral, mas sim como uma relação afetiva leve.

Existem aqueles que praticam corrupção, mas tem agendas sociais impecáveis. No Brasil existem corruptos com consciência social. Como assim?

Você pode ser contra o racismo, contra o sexismo, contra preconceitos totais —existirá isso?—, defender a democracia, não usar expressões como "índios", mas só "povos originários", e ao mesmo tempo, ser corrupto. Superfaturar, montar empresas laranjas para vencer licitações "amigas", montar esquemas com ONGs "amigas", e ter consciência social.

Corruptos que amam Jesus já é um clássico conhecido, o que parece novo é a ideia de um corrupto com consciência social.

Nesse cenário, em que a corrupção é parte normal das relações comerciais, públicas ou privadas, se você não joga o jogo, age como alguém que atrapalha o bom andamento das coisas —o que em inglês costuma se dizer "he doesn’t play ball", ele não joga o jogo. Alguém que não merece confiança, alguém que pode furar o bom esquema das coisas.

A pergunta é: isso deve ser dito aos mais jovens —que se acham futuras pessoas incorruptíveis porque adoravam o professor de filosofia— ou não, e sim devemos deixar que eles aprendam quando crescerem e tiverem que pagar boletos, envelhecerem e acumularem fracassos como todo mundo?

O que faz uma pessoa recusar uma rachadinha? A pergunta ética por excelência é esta e não se eu roubaria caso fosse invisível —o que nunca serei. Temperamento seria a causa? Temperamento A recusa a rachadinha, temperamento B topa a rachadinha. Mas, temperamento é contingência, ninguém escolhe ou tem acesso a criar outro temperamento, apesar das mentiras dos coaches.

Valores familiares? Hum... Não sei. Normalmente, quem fala frases como "meu pai me ensinou valores éticos" não é de confiança. Neste caso, você tem uma chance enorme de estar diante de um picareta. E sem repertório: qualquer pessoa que conhece ética, sabe que virtudes são silenciosas, só se deixam conhecer pela ação e nunca pela autoenunciação prévia.

Talvez a pessoa já tenha muito dinheiro e por isso não precise disso. Nesse caso, não vale. A questão só vale se for difícil recusar o dinheiro oferecido, certo? A virtude se testa em ambientes que lhe são hostis. Sinto muito quem fica por aí cantando virtudes e ganha dividendos de bancos por cem encarnações.

O medo de ser pego pode ser a causa da recusa, mas, neste caso, não me parece haver virtude porque num outro ambiente mais seguro esta pessoa poderia incorrer no ato em questão.

Assim sendo, não creio que seja fácil dizer por que uma pessoa recusa uma rachadinha. Tendo a hipótese do temperamento.

A guisa de conclusão, valeria a pena refletir se o Brasil continua sendo uma terra sem lei — está na moda negar essa hipótese por conta do frenesi com a PL das Fake News. Suspeito que o Brasil continua sim sendo uma terra sem lei. Aqui continua valendo a máxima "para os amigos tudo, para os inimigos a lei", não?

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