Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Setor artístico é um dos mais falsos do planeta, com ética morta de fome

Artistas dão pitaco na política nacional, mas sabemos bem que a ignorância sempre moveu o mundo

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De onde virá esse hábito brasileiro de dar voz a cantores, atores, artistas plásticos, fotógrafos e similares quando se trata de análises sociais, políticas e quiçá econômicas?

De qual rincão da experiência histórica vem essa crença supersticiosa segundo a qual quem tem certos dons estéticos também os tem no âmbito da complexa análise do nosso tempo?

Título: Canetti, Brecht e Babel. A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada digitalmente, em técnica vetor, com efeito gráfico de fios finos em preto, no contorno de diversas cores. A imagem mostra, da esquerda para a direita, as figuras multicoloridas, até o peito, de Canetti, Brecht e Babel, lado a lado. Ao fundo, o Portão de Brandemburgo (Berlim), em tons avermelhados e céu azul claro.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 8 de maio de 2023 - Ricardo Cammarota

Em parte, vem do romantismo e sua crença no gênio do artista profeta e das vanguardas, além de sua fé no futuro como fruto da destruição de tudo que existia até então.

Talvez o exemplo mais insano seja artistas darem lição de moral quando "o mundo da arte" sempre foi um dos mais falsos da face da terra.

A famosa ética morre de fome entre os funcionários da arte. Vale dizer que este vício não é exclusivo dos brasileiros. Até cantores estrangeiros dão pitaco no dia a dia da política nacional. Mas não há nada de novo no front. A ignorância, afinal, sempre moveu o mundo.

Peguemos um exemplo histórico, conhecido por representar uma espécie de Meca das artes nos anos 1920: Berlim.

Para isso, acompanhemos alguém que viveu isso de perto. Um observador com credenciais impecáveis: o Nobel de literatura de 1981, Elias Canetti, no volume dois da sua autobiografia, "Uma Luz no Meu Ouvido", com tradução publicada pela editora Companhia das Letras.

A Berlim dos anos 1920 é representada como uma cidade rica em ideias, criatividade, fadada a ser uma espécie de nova Paris, não fosse pela catástrofe nazista, o que não deixa de ser uma verdade.

A análise que faz Canetti desse período não significa desqualificar qualquer um dos elogios estéticos feitos a alguns dos artistas que ali viveram, frequentaram seus cafés e restaurantes, discutiram teatro, arte, poesia, literatura, política, fizeram sexo com mulheres maravilhosas, elas mesmas parte do elenco de estrelas. A crítica de Canetti vai no sentido do que poderíamos chamar de crítica de costumes.

Autor por essência cosmopolita, que falava várias línguas, judeu sefaradi da Bulgária —quando ele nasceu ainda parte do império austro-húngaro— e de família abastada, Canetti às vezes se descreve como sendo de ética puritana.

Os convivas eram basicamente movidos por uma vaidade de tamanho monstruoso. Todos queriam apresentar a cada dia uma ideia supostamente original. Afinal, eram vanguarda. Em cada esquina despontava uma estrela das artes. Cada um falando mais alto que o outro, numa cacofonia insuportável.

Canetti, que incrivelmente se via como um jovem provinciano de uma cidade decadente, Viena, fora convidado por uma de suas belas amigas, Ibby, uma poetisa húngara para quem ele traduzia os poemas para o alemão, a passar um verão com ela em Berlim.

Ele teve duas estadias na cidade das artes, uma de três meses e outra de seis semanas, na mesma época, no fim dos anos 1920. Nosso jovem fica atordoado com tamanha demonstração de vulgaridade e oportunismo.

O modo como as grandes cabeças corriam atrás do dinheiro dos burgueses, que apareciam no meio do circuito a fim de praticar o mecenato ou simplesmente partilhar o leito de alguma grande artista, era vergonhoso.

Entre vários nomes, vamos pegar dois exemplos famosos com quem Canetti conviveu durante os dias intensos que passou em Berlim.

Bertolt Brecht, grande dramaturgo marxista, é apresentado como um oportunista que chegou a fazer propaganda de uma marca de carro para ganhar um de presente da fábrica.

Arrogante, vaidoso, grosseiro nos modos, mas manso com quem ostentava poder e dinheiro, nosso grande herói do teatro marxista estava longe de ser uma pessoa séria ao fazer análises que fossem críticas à sociedade.

Issac Babel, jornalista e escritor judeu soviético, marxista e leninista, foi uma das vítimas dos expurgos stalinistas.

Ele passa pela cidade de Berlim e lá fica algum tempo a caminho de Moscou, vindo de Paris. Fica chocado ao perceber como a classe artística de Berlim era muito mais fútil e interesseira do que a parisiense.

Segundo Canetti, Babel era uma honrosa exceção no mundo das artes berlinense. Nunca conseguia ficar muito tempo nos jantares dos grandes artistas caça-níqueis em busca de revolucionar o mundo com sua fama pessoal.

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