Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

A sonâmbula na janela

A razão tem suas razões que a própria razão desconhece

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Dicas para manter o pau duro e a vagina umedecida. Dificuldade na penetração. A mulher goza mesmo na penetração? Uma questão escolástica para as mentes ilustradas do século 21. O século ridículo.

Aos poucos, os jornais viram revista Capricho. E não para aí. Quem traiu quem. Quem bate em quem. Quem processou quem por "ghosting" —um desses termos idiotas da moda para a turba infantil das redes— na Nova Zelândia? Aos poucos, o progresso vai mostrando sua boca desdentada e sua deformação facial. E a dita inteligência pública torna-se "inteligentinha", achando-se avançada.

A ilustração colorida de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pastel seco sobre papel, As imagens estão sem fios de contorno, em acabamento estilo esfumaçado. Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, a ilustração estilizada, figurativa, não apresenta uma narrativa linear. A imagem composta por uma janela aberta com as cortinas claras esverdeadas e esvoaçantes para dentro de uma sala escura onde há uma cadeira que é iluminada por raios de luz  vindos de fora e, entre elas, uma nuvem branca acizentada. A pintura tem tons de preto, vermelho
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota/Folhapress

A obsessão pelos gêneros também é parte do ruído geral inútil. No fundo, trata-se de sexo. Quem quer dar, quem quer comer, quem quer dar e comer, quem é indiferente a dar ou comer. Tudo sexo. Freud ri feliz vendo onde foi parar a velha histeria.

O mundo se torna uma grande rede de mexericos. Daqui a pouco, ouviremos as estrelas do universo fofocando. Uma nova forma de apocalipse infame. A luta entre Deus e o Diabo sempre foi mais digna.

Olhemos de longe essa nebulosa de seres risíveis em crescimento espiral. O que aconteceu com essa espécie? "Minha hipótese": somos uma espécie precária psiquicamente —além de fisiologicamente infeliz—, e a civilização moderna racionalista, tecnológica e, portanto, de uma pobreza espiritual atroz, é um surto neurótico que acometeu a psique de uma espécie que permanece, em muito, intoxicada ou saturada —no sentido químico do termo— por elementos religiosos primitivos e pura e simples irracionalidade.

Nesse sentido, sob pressão do surto, nos afogamos no caldo dessa patologia que se assenta na história da própria evolução —ou involução— da psique. O paradigma hermenêutico —interpretativo— da nossa época deveria ser o de uma patologia histórica insuperável em escala e não o de um progresso em curso. Quanto mais emitimos ruídos —nós que evoluímos num mundo habitado em toda parte pelo silêncio— mais doentes ficamos.

O ridículo descrito na abertura desta coluna é apenas um dos fenômenos de uma espécie pré-histórica que vive no exílio do seu habitat natural psíquico, a saber, o mundo dos mitos, dos delírios extáticos, dos sonhos com os mortos que falam, das deusas e dos deuses que gozam e criam o ser por meio de seus óvulos e esperma, como é comum ver nos relatos míticos politeístas.

Ou da busca da graça, de um amor divino que não existe, mas que nos conforta, da luta contra o mal, que não derrotamos nunca porque é, simplesmente, mais forte do que tudo, e o mundo é sustentado nele.

A razão não é uma mera estranha a nós —a razão tem suas razões que a própria razão desconhece, não só o coração, como dizia Pascal no século 17—, mas uma neófita, uma recém-chegada, que nada sabe sobre nós e sobre si mesma, afogada num inconsciente que transcende o indivíduo e o mergulha num magma primitivo escuro e assustador, como num abismo de águas profundas.

Antes de pensarmos, já percebíamos. Antes da consciência, já pensávamos e percebíamos, mas, de certa forma, percebíamos esse emaranhado de ideias e imagens —o pensamento em si— como uma visitação do mundo exterior e divino. Os deuses falavam dentro da nossa consciência, não era ela que pensava nos deuses e em tudo a sua volta. Só os ingênuos pensam que somos o sujeito do "nosso" pensamento, quando, na verdade, somos seu objeto, seu refém.

Quem conhece conceitos como "arquétipo" ou "inconsciente coletivo" do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), criador da psicologia analítica, percebe a semelhança entre "minha hipótese" e sua antropologia filosófica ou teoria da psique. Como disse Jung, "a humanidade nada pode contra a humanidade". O que decorre de um juízo como esse?

Antes de tudo, uma atitude radicalmente oposta ao "páthos" contemporâneo: a mais aterradora humildade. Quando dizemos algo como "a humanidade deveria isso" ou "a humanidade conseguirá chegar àquilo", não temos a mínima ideia do que estamos a dizer. Não temos nenhum controle sobre a humanidade, ela vaga sobre o mundo como uma sonâmbula em busca de uma janela.

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