Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Olimpíadas 2024

Família de Julia Soares vendeu bombons, fez bico em festa e restaurante e teve 'promessa de Deus' de que ela seria 'orgulho'

Empregada doméstica e analista, os pais da nova estrela da ginástica artística brasileira pegaram voos com escalas, trem e até ônibus para ver a filha em a Paris

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Paris

A família de Julia Soares, a mais nova estrela da ginástica artística brasileira, decidiu que mesmo sendo preciso dar a volta ao mundo, pegando voos baratos com escalas, trem e até ônibus, iria a Paris para ver a filha disputar a Olimpíada.

O pai dela, Jackson Soares, é analista da PepsiCo do Brasil. A mãe, Fabiana, trabalha como doméstica na casa de uma família em Curitiba (PR). Há dois anos, eles começaram a juntar dinheiro para a viagem.

Cheng Min/Xinhua
Julia Soares se apresenta nas Olimpíadas de Paris - Cheng Min/Julia Soares faz apresentação no solo nas Olimpíadas de Paris

No dia 19, embarcaram de São Paulo para Roma. Dois dias depois, pegaram o trem e fizeram a viagem noturna para Milão, onde pousaram na casa de uma amiga de Giovanna, a irmã mais velha de Julia. Pegaram o ônibus para Lucerna, na Suíça. Dormiram na estação de trem e no dia seguinte foram sobre trilhos para Paris. Ficaram num apartamento de um quarto nos subúrbios da cidade. Além dos pais e de Giovanna, dois tios se hospedaram no mesmo lugar.

Dois dias depois da conquista da medalha de bronze, a família recebeu a coluna para um café. Eles ainda estão ansiosos porque Julia volta a competir nesta segunda (5), na final das barras assimétricas.

No dia anterior, eles tinham encontrado a filha rapidamente. "Ela levou a medalha pra gente ver. É um peso, aquela medalha! É linda, né, amor?", diz Fabiana para o marido. Os dois contam que a palavra de um pastor sobre o futuro de Julia foi decisiva para que, mesmo com dificuldades financeiras, concentrassem todas as suas energias em apoiá-la na carreira.

Os pais da ginasta Julia Soares, Fabiana e Jackson, em entrevista à coluna - Arquivo Pessoal

Fabiana começa a contar a saga da família, agora premiada com o bronze olímpico. "A gente sempre gostou de esporte. O pai [Jackson] é apaixonado por futebol. E sempre acreditamos que, quando você ocupa a cabeça de uma criança com a prática de algum esporte, uma arte, a probabilidade de ela se tornar uma boa pessoa é maior ", diz.

Jackson era cabo do Exército e "via muitos pais fazendo isso [colocando os filhos para fazer esporte]". Perto do quartel onde ele servia tinha uma escola de balé. "Eu via aquelas menininhas, a coisa mais linda. E ficava imaginando a Giovanna [então com 4 anos, e ainda a única filha] fazendo dança. Só que era uma escola muito cara. Eu ficava só no sonho, né?".

Alguns anos depois, Júlia já tinha nascido quando Fabiana descobriu um complexo público que oferecia uma série de práticas esportivas. Era de graça. Não tinha balé, mas tinha ginástica olímpica. "O pai sonhava com as filhas bailarinas. Mas o balé era muito caro pra gente porque, de fato, somos muito simples. Não tínhamos condições".

Ao mesmo tempo, era o ano da Olimpíada de 2008, "e a ginástica estava bombando". Giovanna foi aceita no complexo e começou a treinar. Júlia tinha 2 anos, e ia com a mãe ver a irmã dar piruetas. "Ela tentava fazer espacate, tentava imitar", diz Fabiana.

"No dia em que fez 4 aninhos, ficou nas ponta dos pés no balcão e falou para a secretária [do complexo, hoje batizado de Centro de Excelência na Ginástica do Paraná, o Cegin]: 'Agora eu posso entrar'".

Em pouco tempo, Iryna Ilyashenko colocou seus olhos sobre Julia. E quem é Iryna? Ucraniana, ela era (e ainda é) nada mais, nada menos do que treinadora da seleção brasileira de ginástica olímpica. Naquela época, ginastas como Diane dos Santos e Jade treinavam no Cegin.

Quando vi a minha filha com a Daiane dos Santos, com a Jade, comecei a sonhar

Fabiana Soares

mãe de Julia Soares

"Ela colocou a Julia pendurada numa paralela [barra assimétrica] e soltou. E foi tocando na Julia de um jeito! Encostando nas pernas, nas costas, na canela —porque parece que quem tem canela fina é boa para o esporte."

E foi assim que, aos 4 anos, Julia foi selecionada para o treinamento de alto rendimento. "Eu vou ser sincera com você: quando vi a minha filha com a Daiane dos Santos, com a Jade, nas mãos daqueles ucranianos, eu comecei a sonhar, 'ela tem potencial, um dia pode acontecer'."

Mas Julia era muito nova, e poderia desistir no meio do caminho. De 19 meninas daquela turminha, porém, só ela seguiu treinando. Veio uma competição, veio outra. Julia começou a subir em pódios.

Na mesma época, o casal foi à palestra de um pastor na igreja evangélica que frequentavam, a Comunidade Cristã Apostólica. "O cara era magnífico", diz Jackson. No fim do evento, as pessoas se aproximavam do religioso, que era deficiente visual. "Ele pegava nas mãos de cada um e orava", relembra Jackson.

Aconteceu então algo definitivo na vida da família. "O pastor pegou nas mãozinhas dela, calejadinhas [por causa da ginástica] e falou: "Você vai ser o orgulho da nação". "A partir daquele momento, começamos a planejar a nossa vida para colocar as nossas filhas no lugar que Deus reservou a elas. Redirecionamos o nosso barco", diz Jackson.

Julia come uns quatro ovos por dia, no mínimo. Eu fico abismado

Jackson Soares

Pai de Julia Soares

Fabiana largou o emprego de agente de saúde na prefeitura, em que ganhava um salário mínimo. Começou a trabalhar como empregada doméstica diarista, com maior liberdade de tempo. E passou a viver em função das filhas. Eles moravam, e ainda moram, nos fundos de uma casa na cidade de Colombo, na região metropolitana de Curitiba. A irmã de Fabiana, tia de Julia, mora na parte da frente com o marido.

O local fica a 11 km de Curitiba. Jackson passou a pegar ônibus para ir ao trabalho. Com isso, liberava o carro para Fabiana levar as meninas às atividades esportivas. "Demorava duas horas para ir e duas para voltar. Mas eu fazia com prazer", diz ele. "Era uma ordem de Deus. Não podíamos escolher."

Sem a renda fixa de Fabiana, o dinheiro encolheu. A família começou então a vender bombons para fazer frente aos gastos com combustível, sapatilhas, uniformes. Nos finais de semana, Jackson fazia bicos de garçom. O casal também animava festas infantis.

Houve apuros e situações até mesmo desesperadoras como a da vez em que ela, campeã nacional na categoria pré-infantil, foi chamada para ir à Bolívia representar o Brasil no Campeonato Sul-Americano de Ginástica.

O pastor pegou nas mãozinhas da Julia, calejadinhas [por causa da ginástica] e falou: 'Você vai ser o orgulho da nação'

Jackson Soares

Pai de Julia Soares

As despesas, de cerca de R$ 10 mil, ficariam por conta dos pais. A resposta teria que ser dada em dois dias. Nem tempo para fazer empréstimo em um banco eles tinham. "Pra gente era muito dinheiro", relembra Fabiana. "Chegamos em casa falando 'meu Deus do céu, e agora?"

Jackson então pensou: "Se Deus fez essa promessa para a vida dela, ele vai fazer acontecer. Vamos colocar uma postagem no Facebook, contando toda a história, para quem quiser poder nos ajudar". "As pessoas começaram a ir em casa para nos dar dinheiro", relembra Fabiana. Os colegas de trabalho de Jackson fizeram vaquinha para colaborar. Julia foi à Bolívia. E voltou com a medalha de prata.

Em 2018, a atleta entrou na seleção brasileira. Começou a receber cerca de um salário mínimo e a ter todos os seus custos de viagem bancados pela Confederação Brasileira de Ginástica (CBG). "Aí graças a Deus acabou bombom, rifa, bazar, acabou pedir dinheiro", relembra Fabiana.

Ela recebe também bolsa atleta do governo federal. Com isso, paga as despesas pessoais e se responsabiliza pelas compras de supermercado. "Ela come uns quatro ovos por dia, no mínimo. Meu Deus. Eu fico abismado!", diz o pai.

A ginástica toma praticamente o tempo completo da rotina de Julia. Ela sai de casa às 7h para treinar e só volta às 19h. Tem duas tardes livres por semana. À noite, estuda inglês. Aos 18 anos, quer fazer vestibular para Educação Física.

Algumas vezes, Julia termina as atividades mais cedo e vai à casa em que a mãe trabalha como doméstica, no bairro Ahú, em Curitiba. "Ela até dorme em um sofazinho que tem lá", diz Fabiana, dizendo que sua patroa, com quem trabalha há oito anos, é compreensiva.

Ela precisa se programar para quem sabe, no futuro, abençoar outras crianças como foi abençoada

Fabiana Soares

mãe de Julia Soares

No dia em que a equipe da ginástica ganhou a medalha, a família terminou a noite cantando "olê, olê, olá, Julia, Julia" em um bistrô parisiense. Julia é a caçula da equipe da ginástica olímpica, e a única que não treina no Flamengo, no Rio de Janeiro. É também introspectiva. Mas, segundo Fabiana, está perfeitamente adaptada ao grupo, onde tem apoio especialmente de Jade.

"A Jade abraçou a Julia como se fosse a mãe dela. Essa é a grande verdade." Apesar da repercussão estrondosa que a performance de Julia está tendo no Brasil —seu número de seguidores no Instagram saltou de 47 mil para 1,9 milhão— os pais se preocupam com o futuro dela.

Pelos cálculos que eles fazem, a ginasta ainda pode disputar três Olimpíadas, até os 30 anos de idade. E depois? "A gente sabe que ninguém vai ser ginasta até os 60 anos", reflete Fabiana. Eles dizem sempre à filha que é importante poupar alguma coisa, ainda que isso importe em sacrifício.

Os planos dela para o futuro depois do esporte, revela a mãe, incluem montar um centro de excelência de ginástica artística e de balé. "Ela precisa se programar para quem sabe, no futuro, abençoar outras crianças como foi abençoada".

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