Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária

Perfume de Mulher

Descubro que o feminismo ganhou nova demanda: pintar nossos lares de rosa

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Ilustração de Silvis para Manuela Cantuaria de 9.jul.2019.
Silvis/Folhapress

Entro no Uber, bato a porta, a porta não fecha direito, faço piada batida sobre minha mão de alface, agora bato a porta com força demais, peço desculpas, o motorista rebate com uma piada triste, diz que a porta é que nem “mulher de malandro e gosta de apanhar”.

Enfio três balinhas de iogurte ao mesmo tempo na boca, para que me impeçam de falar qualquer coisa. São 22h de uma terça, está tarde demais para problematizar. Só quero voltar para casa, prefiro seguir no piloto automático. O motorista elogia meu perfume e o ar fica ainda mais pesado. Não consigo frear o impulso: “Se eu fosse homem, e entrasse no seu carro com um perfume muito cheiroso, você falaria a mesma coisa para mim?”.

“Não.”

“Por quê?”

“Porque seria inadequado.”

“Por que seria inadequado?”

“Porque isso daria a entender que eu sou gay, e nada contra ser gay, eu mesmo tenho amigos gays, mas eu não sou gay.”

“Mas por que um homem pensaria que você é gay por ter elogiado o perfume dele?”

“Porque aí pode parecer que estou dando em cima do cara.”

“E não posso achar que o senhor está dando em cima de mim?”

“Pelo amor de Deus, sou casado. Só estava puxando assunto.”

Minha dieta de balinhas segue a todo vapor. A voz anasalada do GPS tenta quebrar o gelo, sem sucesso. O tique-tique da seta. Os olhos do motorista brilhando no retrovisor, como quem descobriu a pólvora.
“Entendi. A senhora é feminista. Minha esposa também é dessas, lá em casa é ela quem manda, se ela quiser pintar a casa toda de rosa, ela pode!”

Descubro que, para além da igualdade de direitos, de sermos vistas como sujeito, e não como objeto —ou alvo constante de galanteios travestidos de comentários inocentes —, o movimento feminista acaba de ganhar uma nova demanda: pintar nossos lares de rosa.

A maçaroca de morango grudando no meu dente é o menor dos incômodos. Hora de usar minha resposta padrão para comentários aleatórios no Uber.

“Pode crer.”

“Aliás, ela adora quando eu elogio o perfume dela.”

“Vocês têm intimidade para isso. Agora, se um completo desconhecido fizesse o mesmo, será que ela ia gostar?”

O motorista respira fundo. Sua paciência está se esgotando junto do estoque de balas.

“A senhora não acha que está exagerando?”

“Só estou puxando assunto.”

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