Nos filmes de época, sabemos que um personagem está próximo do fim quando ele tosse em um lencinho, e, em um plano fechado, vemos que o lencinho está sujo de sangue. A partir daí, não precisa ser cinéfilo ou pneumologista para saber que aquele personagem está com os dias contados.
Os anos também se despedem de nós com sinais específicos. Percebi que 2019 estava acabando quando me vi embarcando, ainda que contra a minha vontade, em um trenzinho humano.
O famigerado trenzinho acontece quando um grupo de pessoas, em uma confraternização de final de ano, se enfileira, colocando as mãos nos ombros da pessoa que está na frente, e atravessa a pista de dança, geralmente guiado pela figura mais bêbada do recinto.
Ser dragado por um trenzinho é um caminho sem volta. Você deixa de ser um indivíduo com vontade própria e é transformado em mais um vagão. Melhor não quebrar a corrente ou uma parte do trem
será abandonada à própria sorte, se debatendo feito um rabo de lagartixa recém-cortado.
Sem qualquer possibilidade de fuga daquela situação, aproveitei o sacolejo da viagem para refletir um pouco, afinal, dizem que essa época do ano serve para isso —e não só para discutir com a parentada, entrar no cheque especial e ter sua fé na humanidade soterrada por neve artificial e uvas-passas.
Percebendo que o trenzinho crescia e arrastava a maioria dos presentes na festa, me dei conta de que havíamos embarcado em uma metáfora perfeita do Brasil em 2019: um longo encadeamento de vexames, conduzido por um maquinista completamente alucinado, e que ninguém sabe ao certo aonde vai parar.
A próxima estação, supostamente, era para ser 2020, mas, pelo andar da carruagem, parece que estamos indo para o século passado.
Para quem começou o ano entoando o mantra “ninguém solta a mão de ninguém”, não poderia haver forma mais coerente de despedir-se de 2019. Um ano que, apesar de moribundo, ainda vai nos assombrar por muito tempo.
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