Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu

Um beijo roubado é assédio, mas ninguém te avisa isso aos sete anos

Eu via os garotos da minha turma e imaginei que também tivesse o direito de imitá-los, mas não era bem assim

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O sangue jorrava do meu joelho. A inspetora da escola, com os dedos em pinça, abria e fechava a ferida, como se ela fosse uma boquinha, que ela dublava, com a voz afetada: "Bem-feito! Quem mandou ser assanhada?".

Um machucado falante era tudo o que eu não precisava naquele momento. Já tinha sido humilhada o suficiente, já tinha me estatelado no recreio, na frente de todos os alunos, e o motivo da minha queda era ainda mais constrangedor.

Eu estava correndo atrás de um menino. Tentei beijá-lo na boca, mas ele não correspondeu à minha investida, deixando isso bem claro ao disparar na direção oposta como se a vida dele dependesse disso.

Ilustração de 2 pernas com calça branca de bolinhas pretas e botas de salto verrmelhas com uma névoa cinza por cima
Publicada nesta segunda-feira, 8 de agosto de 2022 - Silvis

Na hora, me pareceu uma ótima ideia persegui-lo. Quando se tem sete anos, nos anos 1990, ninguém te avisa que um beijo roubado é assédio. Eu via os garotos da minha turma fazendo isso o tempo todo e imaginei que também tivesse o direito. Mas não era bem assim.

Ele entrou no banheiro masculino, como se uma muralha invisível fosse me impedir de lutar pelo meu amor.

Segui atrás dele, mas o chão estava molhado e acabei escorregando e estourando meu joelho em uma quina azulejada.

A inspetora tascou Merthiolate no corte, fazendo ele doer ainda mais. Disse que era isso que acontecia quando a gente corria atrás de meninos. Acabava se expondo ao ridículo, humilhada e machucada.

Não vale a pena, ela dizia. Primeiro, porque eu ainda não tinha idade para isso. Segundo, porque mesmo se tivesse, aí é que saberia o que é dor de verdade. Nossos olhos marejados se encontraram, e percebi que ela também tinha um machucado falante, talvez por baixo do uniforme, vai saber.

Então o que é pra fazer quando a gente gosta de um menino? "Nada!", respondeu o machucado, antes de sua voz aguda ser abafada por um curativo. "Finge que não está nem aí", arrematou a inspetora.

Cheguei em casa com coração e joelho em frangalhos. Queria contar a verdade, mas me sentia amordaçada como meu machucado. Inventei uma história qualquer e minha mãe se limitou a dizer que, se continuasse assim, ia ficar cheia de marcas, igual a um moleque.

No dia seguinte, fiz o que qualquer criança de sete anos apavorada faria: corri atrás do menino de novo e tomei uma advertência. Ninguém mandou ser assanhada, mas preferi parecer um moleque do que fingir que não estava nem aí.

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