Não consigo me locomover de um ponto A até o B sem que alguém, no meio do trajeto, me puxe pelo braço perguntando o que achei do filme "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos.
Imagino que minha obsessão por personagens femininas tenham me transformado numa espécie de ímã para a tortuosa pergunta: afinal, o filme é ou não feminista?!
Protagonizado pela personagem Bella Baxter, interpretada por Emma Stone, "Pobres Criaturas" vem atraindo multidões aos cinemas e, com a fúria de um cajado de Moisés, separa o público em
dois grupos heterogêneos.
O primeiro rotula o filme como uma fantasia masculina, quiçá pedófila, que objetifica a protagonista; e o segundo o celebra como uma libertadora fábula sobre o prazer feminino.
Atenção: spoilers adiante. "Pobres Criaturas" é a saga de uma Frankenstein de mangas bufantes. Um experimento de um cientista excêntrico a partir do corpo de uma grávida com morte cerebral, trazida de volta à vida por meio de um transplante —sendo o doador do cérebro ninguém menos do que o bebê que ela esperava. Ou seja, Bella Baxter é mãe e filha, mulher e menina, ao mesmo tempo.
É a partir desta bizarra configuração, somada à jornada de autodescobrimento associada ao sexo da protagonista, que se desenrolam as acusações de que o filme contribui à cultura da pedofilia.
Mas Bella Baxter me parece ser exatamente o contrário do ideal feminino perpetuado pela cultura da pedofilia, que é um corpo de menina com (suposta) mentalidade de mulher. Daí a velha e doentia justificativa: "mas ela é muito madura para a idade dela".
A protagonista, por sua vez, tem corpo de mulher e mente de criança. Pedófilos não estão interessados em cérebros. O que define a pedofilia é a atração sexual por crianças impúberes, o que definitivamente não é o caso de Bella —cujo corpo já gerou uma criança.
"Ah, mas ela é uma criança". É e não é. Ela é as duas coisas e nenhuma. A mulher não é só corpo. E não é só mente. Nunca é possível separá-los, ou hierarquizá-los —ainda que a gente insista em fazer isso,
achando que cabe à mente controlar os instintos do corpo.
A sabedoria do corpo feminino não é subestimada pelo roteiro, o que é um avanço. Não acredito que o filme incentive a pedofilia, mas se o conjunto da obra é feminista ou não, isso fica para a semana que vem.
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