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'Pobres Criaturas', de Yorgos Lanthimos, traz feminismo anti-'Barbie'

Com o reconhecimento do filme, diretor atesta que alcançou domínio sobre o cinema barroco que ele próprio inventou

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Pobres Criaturas

  • Quando Estreia nesta quinta (1°), nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Emma Stone, Mark Ruffalo e Willem Dafoe
  • Produção EUA, Reino Unido e Irlanda, 2023
  • Direção Yorgos Lanthimos

Yorgos Lanthimos costuma ser execrado por certa parte da cinefilia. Suas ideias muito mirabolantes, a visão bastante negativa sobre a humanidade e o gosto por um formalismo que nem sempre se justifica para além da simples afetação compõem uma fórmula infalível demais para não perturbar seus detratores. Estes que ele coleciona desde que se tornou conhecido, em 2009, com seu presunçoso longa "Dente Canino".

Tal hostilidade não é todo incompreensível, mas o fato é que o diretor grego parece vir conseguindo a cada novo longa converter o que seriam seus defeitos exatamente no oposto: são o que têm tornado, por exemplo, um filme como "A Favorita", de 2018, um verdadeiro deleite. E também fazem parte do que faz de "Pobres Criaturas" um dos grandes filmes do ano.

Emma Stone em cena do filme "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos
Emma Stone em cena do filme "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos - Divulgação

Seu merecido Leão de Ouro no Festival de Veneza atesta que Lanthimos chegou a um domínio sobre o cinema fundamentalmente barroco que ele próprio inventou —com fartas doses de inspiração em nomes como Lars von Trier e Stanley Kubrick, é bem verdade.

Sua obra mais recente, na verve menos lacônica e mais falastrona, debochada, tem rendido filmes mais bem acabados e até fáceis de apreciar, mesmo nos meios em que o cineasta costuma ser mal-recebido.

A trama sobre um cientista maluco, vivido por Willem Dafoe, começa depois que ele transplanta o cérebro de um recém-nascido para o corpo de sua mãe, que acabara de cometer suicídio. Surge, assim, Bella —Emma Stone—, a adulta com cabeça de bebê, que ao longo do filme vai se transformando e se adaptando ao mundo com uma inacreditável esperteza e uma voraz vontade de aprender. Em dias, passa da inocência total para a sabedoria extrema, e não há personagem no filme páreo para sua sagacidade.

Nessa trajetória, Bella tem ânsia por experimentar e se entregar aos prazeres mais óbvios e carnais: é muito engraçado vê-la se empanturrando de pasteizinhos de nata, passando do asco ao torpor quando toma o primeiro porre, ou simplesmente não conseguindo entender por que as pessoas não fazem sexo o tempo todo.

Sua falta de superego e de preocupação com a opinião alheia são um elemento de libertação de uma sociedade que procura o tempo inteiro tolher ou até castigar quem não segue regras. Mas Bella faz as suas próprias, e pouco se importa com quem as julga inadequadas.

"Pobres Criaturas" lida com um tipo de feminismo curioso, que não faz uso de uma certa chatice professoral e moralista tão comum em alguns filmes que elevam suas protagonistas à condição de um ser acima do resto da humanidade. Até porque Bella está longe de ser essa mulher; seu feminismo existe de um modo salutarmente orgânico, que vem encravado na própria essência daquela estranha criatura inventada pelo doutor amalucado.

De certo modo, é como se o longa fosse uma espécie de anti-"Barbie". Aliás, é interessante que os dois filmes tenham sido frequentemente comparados por alguns críticos, já que mostram duas personagens ingênuas e puras jogadas em um mundo machista e cheio de percalços. Mas a boneca da Mattel deixa de viver em uma redoma cor-de-rosa para conhecer os dramas terrenos sempre enquanto uma vítima da cruel realidade humana.

Já Bella, desde seu surgimento, faz o resto da humanidade de gato e sapato. Sofre ao descobrir a miséria do mundo, mas não se deixa oprimir —utiliza as grandes falhas da sociedade, a hipocrisia e o conservadorismo, como sua grande arma (nesse sentido, sua personagem lembra muito Abigail, que Stone interpretou no já mencionado "A Favorita").

Barbie e Bella são quase que arquétipos do tipo de visão de mundo e de cinema de seus respectivos diretores. No caso de Greta Gerwig, linear, convencional e meio infantilizada, enquanto no de Lanthimos, rebuscado, amoral e mordaz.

Talvez o filme vá um pouco longe demais quando Bella usa a prostituição para obter dinheiro, porque apesar de nesse contexto o meretrício ser um gesto emancipatório, há um elemento glamorizante no modo como o diretor o apresenta, que talvez exigisse tratamento mais delicado. Mas Lanthimos, isso já está claro, não é um cineasta de comedimentos.

Mark Ruffalo, mais uma vez, está em estado de graça. Seu Duncan é um sujeitinho asquerosamente machista, mas que evolui para um pobre coitado, comendo o pão que o diabo amassou após se apaixonar por Bella.

A cena de dança entre eles em um salão de Lisboa já é um marco do cinema cômico contemporâneo, mas o filme traz vários outros momentos reluzentes com ele —como quando ele leva um tapa de Bella e reage com uma feição entre o susto e um inesperado masoquismo. Ou quando grita o nome da amada dolorosamente diante de uma escada, satirizando Marlon Brando e seu célebre berro "Stellaaa!", de "Uma Rua Chamada Pecado", de 1951.

Willem Dafoe, na pele do cientista ultrapragmático de rosto retalhado, também merece só elogios. E há, obviamente, Emma Stone, que cria uma Bella tão peculiar que levanta suspeitas de que o filme talvez fosse inviável sem ela. A atriz desenvolveu uma maneira inarticulada de se mover, que vai se normalizando com o avançar do filme, à medida que Bella também vai amadurecendo mentalmente. É um trabalho de um domínio sobre o próprio corpo admirável —só uma atriz de primeiríssimo time seria capaz criar algo assim. Neste filme, Stone se consagra de vez como uma delas.

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