Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

As formas do péssimo

Mais um filme se volta para que há de mais incompetente na história do cinema

​O ator e cineasta Tommy Wiseau podia não ser muito inteligente, mas tinha sua visão de como construir um mundo ideal. Bastaria, explica ele a seu único amigo, Gregg Sestero, "que todas as pessoas se amassem".

Num ato de confiança e pedagogia, ele dá a Gregg uma pequena lembrança: um lápis com um globo azul na extremidade, onde em letras brancas se pode ler "Tommy's World".

Andre Escarma para coluna de Marcelo Coelho de 7.fev.2018
André Stefanini

A cena aparece no início de "O Artista do Desastre", filme do ator e diretor James Franco indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado.

Trata-se de uma história real. Milionário e com baixíssimo QI, Tommy Wiseau se achava capaz de escrever, dirigir e estrelar uma obra-prima cinematográfica.

O filme, "The Room", terminou sendo lançado em 2003, e é considerado por muitos a pior coisa já rodada em toda a história do cinema.

Como assim? Estava certo que o título de maior droga da história cabia a "Plano 9 do Espaço Sideral" (1959), do diretor trash Ed Wood.

A vida de Ed Wood tinha sido filmada por Tim Burton em 1993. Com "O Artista do Desastre", James Franco segue o mesmo caminho, atualizando a lista dos grandes fracassados do cinema americano.

Há inúmeras formas de ser péssimo, e as diferenças entre Ed Wood e Tommy Wiseau são tantas quanto as que existam entre um deles e Orson Welles ou Alfred Hitchcock.

Ed Wood, no inesquecível filme do mesmo nome, dedica-se à ficção científica, com monstros atômicos feitos de borracha inflável, laboratórios de cientista louco com mesa de pernas bambas, invasões espaciais feitas com discos de papelão.

Tommy Wiseau segue uma linha realista, inspirado nos dramas familiares de Eugene O'Neill. Suas caretas de sofrimento são tão horríveis quanto as cenas de sexo, nas quais insiste em exibir o próprio traseiro em primeiro plano.

Para seu drama "The Room", Wiseau contou com dinheiro praticamente ilimitado e uma equipe altamente profissional. Uma tomada simples era realizada dezenas de vezes porque ele esquecia as próprias falas, mas terminava "dando certo".

A ruindade do filme não era acidental. O que tivesse de ridículo tinha sido cuidadosamente planejado. Wiseau sabia o que estava fazendo e o que queria: sua falta de inteligência dispunha de todos os meios para se revelar integralmente.

As deficiências de Ed Wood eram de outra ordem. Com orçamento mínimo, filmava cada cena uma vez só, mesmo que o monstro aparecesse na hora errada ou que a explosão do laboratório desse chabu.

Vivido por Johnny Depp no filme de Tim Burton, o autor de "Plano 9" segue literalmente o princípio romântico do poeta inglês Coleridge, segundo o qual a arte, em particular o teatro, vive de uma "suspensão voluntária da descrença".

Ed Wood conclui daí que um efeito especial de péssima qualidade não será notado pelo público: não há incredulidade possível quando se entra numa sala de cinema.

Ou num estúdio. Ed Wood estava tão tomado pela magia ficcional que acreditava na qualidade de qualquer coisa que estivesse filmando. Tudo era convincente, tudo era perfeito.

O pior diretor do mundo, pode-se dizer, é ao mesmo tempo o "melhor" espectador do mundo —aceita qualquer coisa e lida com o filme sem nenhum distanciamento crítico.

O caso de Tommy Wiseau se reveste, talvez, de maior gravidade. O reino da fantasia não é algo em que ele possa ingressar por meio de truques toscos. Wiseau é tosco em si mesmo, sem truque nem fantasia.

Vive num mundo absolutamente real —como é real o mundo de um cachorro ou de um peixe—, só que muito mais elementar que o nosso.

Se Tommy está desesperado, Tommy grita, Tommy bate a cabeça numa televisão, sobe numa escada de pintor e se atira lá de cima. Tommy está desesperado.

"Ed Wood" era um filme sobre a credulidade, tal como era possível numa fase já antiga da cultura de massas. E "O Artista do Desastre"?

Posso ser um pouco piegas, mas acho que se trata de um filme sobre o amor ao próximo. O amigo, a equipe de filmagem e o próprio público terminam tratando bem esse péssimo cineasta. Poderiam esmagá-lo —como tantas vezes fazemos com pessoas burras, na ilusão de que o desprezo lhes ensine quem são.

A ruindade de Tommy Wiseau, ao contrário, cria uma onda de calor humano. No mundo de Tommy, afinal, é possível que todas as pessoas se amem realmente.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.