Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Por que não de táxi?

Em dois livros, o humor judaico aparece com todo seu malabarismo lógico, que sempre ressurge

Ilustração Marcelo Coelho
André Stefanini/Folhapress

Culpa, mães superprotetoras, proibições alimentares, questões de identidade: todo mundo conhece alguns exemplos de humor judaico, e algumas piadas são velhíssimas.

Para quem não foi muito além de Woody Allen nessa tradição, vale a pena ler "Do Éden ao Divã", livro organizado pelo escritor Moacyr Scliar (1937-2011), Patricia Finzi e Eliahu Toker (1934-2010). Foi reeditado agora pela Companhia das Letras.

Além de muitas piadas ótimas, há também contos e cartuns (não tão bons) e coisas que, para mim ao menos, são total surpresa.

Uma pequena seção se dedica às pragas judaicas. Seleciono algumas.

"Que lhe caiam todos os dentes, menos um: e que esse doa a mais não poder." Mais uma: "Que tenha dez barcos carregados de ouro --e que gaste tudo em médicos".

Como se vê, essas pragas são em duas partes, com a primeira suficientemente ruim ou enganosamente boa, seguida da maldição definitiva, pior, inapelável.

A melhor de todas, a meu ver, junta as duas partes numa só: "Que um devore o outro e os dois se engasguem". Não tento achar uma "lei geral" para todos os exemplos do livro, mas encontro nessa última praga o traço que mais me fascinou nesse folclore humorístico.

É como alguém que, para fazer graça, puxasse a cadeira da pessoa que vai se sentar, só que com o detalhe genial de que não há cadeira nenhuma sendo puxada.

Uma piada perfeita nesse sentido é a seguinte. Tempos atrás, ainda se explicava às pessoas o funcionamento do telégrafo. Pela explicação árabe, você é convidado a imaginar um cachorro enorme: se puxarem o rabo dele em Damasco, ele irá latir em Beirute.

Na Rússia, são dois personagens. O primeiro pede que o outro imagine um cavalo gigante. Você mexe no focinho dele em São Petersburgo, e ele moverá a cauda em Moscou. O segundo diz: "Certo, mas como se faz para telegrafar de Moscou para São Petersburgo?".

Há também dois personagens na versão judaica. "Imagine", diz o primeiro, "que em vez de um fio telegráfico há um cachorro enorme, com a cabeça em Kovno e o rabo em Vilna. Puxe o rabo em Vilna e o latido se ouvirá em Kovno". "Ótimo", diz o segundo. "E como funciona o telégrafo sem fio?" "Do mesmo jeito", responde, "mas sem o cachorro".

Essa "falta de cachorro" na explicação que precisa de um cachorro ilustra um "buraco lógico" que reaparece a todo momento.

Nos provérbios, por exemplo: "Todo mudo quer falar mais do que deve", diz um. "Quanto mais um cego vive, mais ele vê." Ou na conhecida frase de Woody Allen: "Não é que eu tenha medo de morrer, só não quero estar lá quando acontecer".

O valor da negatividade, do não existente, é sem dúvida a chave de outra piada famosa, em que o menino diz para a mãe que economizou a passagem do ônibus. "Em vez de comprar a passagem, fiz o caminho todo correndo atrás do ônibus". "Ótimo", diz ela, "mas por que você não correu atrás de um táxi?".

No fundo, imagino que seja o mesmo "vazio positivo", ou "zero com valor", que a teologia negativa, na qual nada pode ser dito de Deus --existência que brilha, invisível, na sua ausência absoluta. Mas é também a condição do judeu perseguido ou assimilado, que se reafirma ao fugir ou disfarçando sua origem.

Minha piada preferida a esse respeito trata do tema de modo bem indireto, ou "disfarçado" também. Está em "The Jewish Joke" (a piada judaica), de Devorah Baum, recém-editado pela Profile Press.

O sr. Dropkin era um ator de grande sucesso, que fazia turnê numa cidadezinha. Agacha-se no palco e, sem querer, solta o mais alto peido que já se ouviu no mundo. Envergonhado, decide nunca mais voltar.

Passam-se muitos anos, ele resolve se apresentar lá novamente, mas com nome falso. A recepcionista do hotel, muito simpática, pergunta se ele já conhecia a cidadezinha.

Bem, responde ele, "estive aqui uma vez, mas fiz algo de que me envergonho e nunca mais quis voltar".

"Você não devia ficar assim", diz ela, "as pessoas só pensam nelas mesmas, têm memória curta, ninguém se incomoda... e, afinal, quanto tempo faz que isso aconteceu?".

"Ah, muito tempo... não me lembro bem..." "Vejamos, para eu me localizar: foi antes ou depois do Grande Peido de Dropkin?"

Despeço-me com essa, que achei muito engraçada. Mas humor é muito pessoal; se você não achou graça, não está aqui quem contou.

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