Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Ele sim, ele não, tortura pode ser

Será que o repúdio preferencial a um candidato extremista fere o apartidarismo?

Ilustração de André Escarma
André Stefanini

Volto ao passado. No dia 24 de abril de 1984, no auge da campanha pelas Diretas-Já, a Folha reuniu para uma foto "histórica", no heliponto do prédio, 60 representantes da sociedade civil, engajados na luta pela redemocratização do país.

A lista dos retratados, disponível nos arquivos do jornal, tem inconfundível sabor de época. Estavam lá o simpático Antonio Maschio, dono do restaurante Spazio Pirandello, o então vice-presidente do Corinthians, Adilson Monteiro Alves, e Marta Suplicy, identificada apenas como "sexóloga".

Tratava-se de um retrato representativo da "sociedade civil"? Mesmo na época, a resposta comportava debates. Muita gente estava nos governos do estado e do município de São Paulo, naquele tempo ocupado pelo PMDB.

Assim, posaram para a foto José Serra, então secretário estadual do Planejamento, Valter Nori, presidente do Metrô, o prefeito Mário Covas e o governador Franco Montoro. O presidente regional do PDT, Rogê Ferreira, também estava no heliponto.

O grosso dos participantes vinha do meio sindical.

Havia o legendário pelego Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, mas a maior parte dos sindicalistas viria depois a fazer carreira no PT, como o bancário Luiz Gushiken, o professor Gumercindo Milhomem Neto e a arquiteta Clara Ant.

Havia dois militantes negros, a reitora da PUC-SP, o presidente da OAB e artistas diversos, como o dramaturgo Plínio Marcos e a atriz Bruna Lombardi.

Empresários, praticamente nenhum. Com ideias mais de direita, Cláudio Lembo e o ex-governador (nomeado pela ditadura) Abreu Sodré.

A impressão geral é que se fez o que dava para fazer, sem especial preocupação em equilibrar esquerda e direita, empresariado e sindicatos, homens e mulheres, paulistanos e não paulistanos.

O jornal estava, de qualquer modo, em campanha. Atendia ao que entendeu ser a necessidade do momento histórico e cresceu imensamente com isso.

O crescimento traria novas responsabilidades, por certo. Estabelecido como o mais importante jornal do país, a Folha preocupou-se em assumir uma posição mais de centro, especialmente crítica face ao "grevismo" e ao corporativismo dos sindicatos, e de constante apelo às necessidades do controle fiscal, da redução do Estado e do estímulo ao investimento privado.

Formalizou-se, também, o Projeto Folha, que como se sabe preza um jornalismo crítico, pluralista e apartidário.

Apesar de não ter malufistas e defensores do regime militar a apoiá-la, e de contar com grande maioria de oposicionistas e pessoas de esquerda, a campanha das Diretas-Já era sem dúvida apartidária.

Apoiava-se uma causa institucional, sem vínculo com nenhuma candidatura política.

São inegáveis as diferenças com o momento atual. A Folha, como sempre, não apoia nenhum candidato. Não se atrela a Bolsonaro nem a Haddad —como não se atrelou nem a Collor nem a Lula na eleição de 1989.

O candidato da coligação PT-PCdoB procura, sem dúvida, dar um enfoque "apartidário" a sua campanha neste segundo turno —qualificando, a meu ver com razão, a figura de Bolsonaro como uma ameaça à democracia.

É tarde demais, provavelmente, para dar esse caráter a uma postulação que tudo deve ao lulismo.

Dito isso, muitas perguntas ainda ficam no ar para mim. O movimento "EleNão", pelo menos durante o primeiro turno, não me parecia partidário. Defensores de qualquer candidatura —de Alckmin a Boulos, de Amoêdo a Ciro— poderiam apoiá-lo.

Pessoas sem nenhum comprometimento com o PT repudiam uma candidatura que repetidamente expressa o apoio à tortura, o desprezo aos direitos humanos, a complacência com a homofobia, o sexismo e o racismo.

Como manter o apartidarismo do jornal? Significa isso tratar os dois candidatos como equivalentes e como igualmente descompromissados com a democracia?

Acho isso mais cegueira do que apartidarismo. Numa eleição entre Marta Suplicy e Maluf, em 2000, a Folha publicou um violento editorial contra Maluf, destinando à estreante petista algumas reservas menores.

O PT merece caminhões de críticas hoje e elas devem ser repetidas sempre. Mas nunca tivemos um defensor explícito da tortura como candidato —e disposto a cumprir a promessa.

Será romper com o apartidarismo dizer simplesmente "ele não"?

E o que significa dizer "ele não e o outro também não"? Será que significa "tortura pode ser"?

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