Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Nem tudo que é sólido se desmancha no ar

A Notre-Dame até que resistiu ao incêndio; falta ver se resistirá à reconstrução

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Minha ignorância nesses assuntos é total, de modo que peço a compreensão dos historiadores.

Além do assombro pela coisa em si —falo do incêndio da Notre-Dame—, levei um susto com a foto publicada neste domingo na Folha (pág. B10), que mostrava o instante em que a flecha da catedral caía por terra.

A estrutura —via-se bem— era de madeira! Pensava que fosse tudo de pedra... Santa ingenuidade: uma coisa de pedra maciça, alta daquele jeito, ficaria sem dúvida pesada demais; e o teto, afinal de contas, dificilmente seria de pedra inteiriça também. Fosse de pedra, cairia.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Mas a ilusão de um monumento não deixa de ser sempre essa: ele surge aos nossos olhos como sólido, indestrutível, construído por mãos de gigante, impedindo-nos de saber que por dentro é vivo, vegetal e frágil como uma armação de palitinhos.

A madeira tem, naturalmente, outro simbolismo. É como se, debaixo de seus solenes paramentos de pedra, aquela igreja ainda guardasse a simplicidade da Cruz.

Numa associação menos piedosa, a estaca em chamas também lembra a prática de levar as bruxas à fogueira. Era, dizia-se, para purificá-las.

E que o incêndio tenha ocorrido por causa das obras de renovação da Notre-Dame, eis uma ironia difícil de contornar; é como se o fogo cobrasse um pedágio por tal pretensão à permanência.

Leio que já se organiza um concurso internacional de arquitetura para a reconstrução da famosa flecha. Rezo para que não saia uma grande besteira.

A pirâmide de vidro instalada no Louvre, obra realizada por I. M. Pei em 1989, faz sucesso entre os turistas e os entendidos.

Para mim, continua sendo uma aberração, desproporcionalmente pequena no grande vazio daquela esplanada neoclássica. Algo como um daqueles cristaizinhos místicos que se penduram no teto das casas ripongas, ou um brinquedo de princesa da Disney esquecido no espaço da história real.

O uso daquilo como entrada para o museu e para o metrô absolve, em parte, a sua pequenez pós-moderna. O mesmo aconteceu com o horrível, sempre horrível, Centre Pompidou, geringonça com suas entranhas de tubulação colorida à mostra, com que Renzo Piano e Richard Rogers desfiguraram um dos bairros mais preservados de Paris.

Seja como for, aquilo pôs na moda e revitalizou a região. Havia um antigo mercado de víveres por ali, com a sujeira dos legumes, a confusão dos compradores, a memória de um romance de Zola, com toda a feiura essencial da vida.

No seu lugar, fez-se Cultura. E, para "desmistificar" a ideia de que coisas culturais são bonitas, os arquitetos desenharam uma espécie de fábrica de mentira, uma usina disfuncional, um pesadelo de encanador.

O modernismo estava em plena crise ao fim da década de 1970. Já numa mentalidade "pós-moderna", o museu de Orsay, pouco tempo depois, aproveitou uma estação de trem oitocentista, sem alterá-la demais.

Tratava-se de desvalorizar a ideia de ruptura, e considerar que também o detestado mundo burguês, aquele do século 19, merecia alguma preservação estética.

Que farão com a flecha da Notre-Dame agora? Estamos falando de uma construção que se manteve por séculos e séculos. É difícil sustentar que nossa curta geração tenha o direito de mexer significativamente com uma herança dessas.

O poeta Charles Péguy (1873-1914) escreveu um longo poema em que "apresentava", para Nossa Senhora, a cidade de Paris. Construída às margens do rio Sena, a catedral convivia com as atividades de comércio no cais.

Péguy comparou a igreja a um grande barco —e os fiéis a remadores nos seus bancos. A flecha e os arcobotantes seriam como as gruas e os guindastes do porto.

O barco não carregaria sacas de farelo, "o nosso pobre milho". A carga seria leve, diz o poeta à Virgem, porque feita dos "nossos pecados" —aqueles pecados "pelos quais pagou Teu Filho".

O barco permaneceu ancorado, à beira do rio, por centenas de anos. Mas ainda assim atravessou um grande oceano: o oceano do tempo. A viagem, com remos de madeira e pedra, continua.

P.S.: No artigo anterior, comentei o filme "Soldado Estrangeiro", dizendo que foi dirigido por José Joffily. Omiti, inexplicavelmente, o nome do codiretor Pedro Rossi, que também fez com Joffily o filme "Caminho de Volta".

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