Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

Calma? Alguém quer que eu tenha calma?

Moda nos Estados Unidos é organizar sessões pagas em salas de vandalismo privado

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Tem andado nervoso ultimamente? Inconformado com o governo, com os petistas, com o chefe, com o desemprego, com o trânsito, com a família?

Calma.

Não, não estou dizendo “calma” apenas naquela atitude de quem recomenda ao furioso que respire mais fundo. Isso não adianta. O furioso não quer, não consegue, não pode ter calma.

Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 10.jul.2019.
André Stefanini

A raiva, como a coceira, a fome, o sono ou desejo, precisa ser satisfeita.

Surge a solução, que vem tendo sucesso nos Estados Unidos.

Trata-se do “anger room”, o quarto da raiva. Em troca de uns US$ 20 ou US$ 30, você ganha um taco de beisebol, entra no aposento e se vê autorizado a destruir tudo o que tiver pela frente.

É o vandalismo administrado, submisso à lógica da mercadoria.

No vídeo a que assisti, o lugar era esparsamente decorado como uma sala de visitas normal —retirados, naturalmente, os objetos menos destrutíveis como sofás, almofadas e colchões.

Um aparador em pés palito; uma velha televisão de tubo; um computador com sua tela; uma mesinha de vidro temperado; o armário com portinhas cheio de copos e louças. Num canto, um manequim branco de vitrine.

Tudo pronto para uma sessão de vandalismo particular. Presumo que existiam também sprays de tinta, pois as paredes estavam completamente pichadas. Você pode escolher entre tacos de golfe ou de beisebol.

Bem-vindo ao “anger room”.

Não custa muito. Mas trate de aproveitar. O tempo de permanência no local é limitado a cinco minutos.
Talvez seja pouco. O ideal em termos terapêuticos seria deixar o cliente mais tempo sozinho. Que fique contemplando sua obra destrutiva.

Só assim, imagino, o movimento expansivo da violência poderá recolher-se —fazendo com que nosso pequeno ostrogodo interior retorne, envergonhado, para as dobras mais íntimas e fermentativas da neuroanatomia humana.

Depois do arraso que fizemos, precisamos de um tempo de estranhamento. É necessário que não mais nos reconheçamos em meio a toda aquela miséria. Sair do “anger room” ainda ofegante e rubro de cansaço não me parece a melhor ideia.

É que a raiva pede mais raiva. Quem já não viu o valentão de botequim que, depois de uns xingamentos ou safanões no adversário mais próximo, olha em volta e pergunta se “alguém mais vai encarar”?

Ele se vingou do insulto, real ou imaginário, que tinha recebido. Só que quer ainda mais, já que comprovou a própria força, o próprio destemor. Só a pura exaustão física irá detê-lo.

Cinco minutos não sei se bastam para isso.

Tenho outras dúvidas. Você paga antes ou paga depois? Se pagar depois, quando a raiva já tiver diminuído, talvez você se sinta um idiota. Mas como pagar antes, se você está no auge da fúria?
Será que ainda sobra a ele um pouco de racionalidade para dizer: “Nossa, estou furioso, o melhor é eu procurar um ‘anger room’ antes que eu comece a fazer alguma estupidez...”?

O pior é que o lugar tem regras detalhadas de segurança. O possesso tem de entrar equipado com capacete, luvas, óculos de proteção e roupas especiais. Caso contrário, a empresa não se responsabiliza pelos ferimentos advindos de estilhaços de madeira, cacos de vidro e fragmentos de metal.

Quanta pachorra para chutar o pau de barraca!

O que aconteceu com todos os velhos recursos de eficácia comprovada, como o futebol, o boxe, a intoxicação pelo açúcar, os combates nos videogames?

É diferente. O videogame pode canalizar nossos instintos de violência e de sadismo, mas é puramente virtual. Quanto a socar, não digo um adversário, mas um saco de areia, o problema se inverte: a coisa é real demais, puramente física, sem nenhum apelo para a imaginação.

Fala-se muito na divisão entre a vida real e o mundo da TV, do cinema e da internet. Verdade. Mas existe um terceiro universo, no meio caminho entre os dois.

É o campo do “temático”, dos parques de diversão, da Disneylândia, das casas assombradas, dos jogos de paintball e do cosplay.

Nesse sentido, os “quartos de raiva” poderiam ser aperfeiçoados. Um ambiente imitaria a casa dos seus pais, outro um escritório, outro um tribunal, outro um banco ou supermercado. Esse seria o melhor de todos, aliás.

E também seria preciso mais do que um taco de beisebol. Que tal um lança-chamas, um machado, uma escopeta ou uma submetralhadora?

Ops. Alguém falou em armas de fogo? Mas talvez aí estejamos de volta ao mundo real.

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