Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

O jogo duplo de Tarantino e Almodóvar

Com filmes reflexivos e contidos, os dois diretores chegam à maturidade artística

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Pedro Almodóvar está com quase 70 anos, e Quentin Tarantino logo chega aos 60. Talvez por isso os últimos filmes desses dois diretores pareçam mais sóbrios e maduros, sem a exuberância, a loucura, as reviravoltas extremas de tempos atrás.

Menos coisas acontecem em “Dor e Glória”, por exemplo, do que nos velhos e bons charivaris almodovarianos da década de 1980. Antes, eu não conseguia me lembrar direito da história porque havia complicações demais.

Agora, as memórias de Salvador (Antonio Banderas), um cineasta em crise, são repassadas com ternura e lentidão. O absurdo dos incidentes e a demência dos personagens quase desaparecem —e só algumas frases, totalmente inesperadas, fazem o espectador repetir as risadas de incerteza e choque que outros filmes de Almodóvar sabiam provocar. 

Há uma bela e elegante surpresa final.

Também é pelos 20 minutos finais que o fã de Quentin Tarantino irá se sentir em casa com “Era Uma Vez em Hollywood”. Saímos do cinema em estado de euforia, graças ao desembestado circo de violências do desfecho, sem ligar mais para o quanto o filme tinha de digressivo e espichado. 

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Tudo bem. Tarantino nunca foi tão artístico, tão delicado e reflexivo. Uso o termo “reflexivo” de propósito, 
porque “Era Uma Vez em Hollywood” funciona como um sofisticado jogo de espelhos.

A começar pelo título, que relembra dois antigos sucessos de Sergio Leone (“Era Uma Vez no Oeste” e “Era Uma Vez na América”). Representaram o auge de um tipo de cinema italiano que se fazia passar por produção de Hollywood: em alguns “westerns spaghetti”, as regiões áridas da Espanha substituíam os desertos do Texas, e atores italianíssimos, como Mario Girotti, ganhavam nomes americanos: Terence Hill, no caso.

Era tudo uma espécie de cópia. Tarantino, no seu novo filme, dobra a parada, e faz a cópia da cópia. Filma a filmagem de um filme spaghetti.

Isso porque o herói da história, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), é um ator de faroestes televisivos que, no fim da década de 1960, não tem outra saída a não ser ganhar alguns dólares no cinema italiano.

Outra duplicação está em jogo: Rick não se separa do seu dublê, guarda-costas e faz-tudo Cliff Booth (Brad Pitt). São quase idênticos, às vezes.

Ambos já viveram dias melhores; passam o filme meio paradões. Mas tudo se torna irresistível quando Tarantino faz com que, do nada, um e outro recuperem a extrema eficiência naquilo em que são bons —representar um papel ou resolver algum assunto na pancada.

Um terceiro jogo de espelhos responde pela tensão, sempre moderada, que acompanha o filme. O longa se passa em 1969, ano em que a atriz Sharon Tate foi assassinada por um bando de fanáticos meio hippies, liderados por Charles Manson.

Sharon Tate é uma das personagens de “Era Uma Vez em Hollywood”, e faço o contrário de um spoiler ao dizer que estamos esperando a todo momento que ela venha a ser assassinada. Afinal, 
este é um filme de Tarantino.

Mas também aqui os personagens, os hippies e as vítimas se duplicam.

Volto ao filme de Almodóvar. O personagem de Antonio Banderas está sem saber se vai fazer um novo filme ou não. Encontra um amigo, com quem rompera há 30 anos. 

Tudo, como em Tarantino, se duplica. A dependência química do amigo “reencarna” no protagonista; em vez de uma só mãe, aparecem duas —e o filme que não estava sendo feito se refaz de repente, como uma ferida que se cura sozinha.

Almodóvar e Tarantino chegam à maturidade. No caso deles, isso não se confunde com maestria, com o pleno domínio dos próprios recursos: há muito tempo eles são mestres. 

A maturidade representa mais um voltar-se sobre si mesmo, uma dobra, uma reflexão. 

A partir de uma frase de André Gide (1869-1951), tornou-se comum elogiar o “estilo tardio” de alguns grandes artistas, como Beethoven ou Mallarmé. Na velhice, se tornaram mais ousados. Sua trajetória, dizia Gide, “termina em despenhadeiro”, e, pouco antes da morte, esses criadores “oferecem ao mundo a face mais abrupta de seu gênio”.

Não estamos diante de tais altitudes. Almodóvar e Tarantino têm muito caminho pela frente. Mas, no rumo da descida, inclinam um pouco o corpo —e encontram seu reflexo, nas águas de uma piscina em Hollywood, quem sabe, ou na margem de um rio de lavadeiras, debaixo do sol da Espanha.
 

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