Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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O Padre Nosso desembarca na era digital

Como no cinema de Fellini, rosário eletrônico mistura tecnologia e rito arcaico

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Em alguns filmes de Federico Fellini, o ponto mais alto chega em movimento de espiral. “Os Palhaços”, de 1970, mostra um cortejo cada vez mais rápido de animais, malabaristas, aberrações e arlequins 
girando pelo picadeiro.

É como se uma apoteose de escola de samba tivesse de espremer-se num círculo obsessivo, numa colisão nuclear de desespero e festa.

Correrias semelhantes acontecem no seu documentário delirante sobre Roma, lançado em 1972. No final, dezenas de motociclistas infernais dão voltas pela cidade, projetando sombras e luzes sobre o mármore morto das estátuas.

Ilustração imita botão de tela de celular com o ícone de duas mãozinhas orando e a frase "deslize para perdoar"
André Stefanini/Folhapress

A agitação sem sentido do presente se dispersa numa estrada escura; os monumentos do passado permanecem, igualmente vazios de qualquer mensagem —exceto a de sua própria beleza.

No mesmo filme, há a grande cena do desfile de moda eclesiástica num palácio romano. Uma numerosa audiência de altos clérigos se organiza nas austeras bancadas de madeira.

Duas religiosas cobertas de preto se sentam ao órgão, na frente da passarela. A música, como tantas vezes nos filmes de Fellini, é gaiata.

O desfile começa relativamente comportado, com hábitos de freira em cetim brilhante, que se destacam do corpo como estandartes. O movimento das modelos é rígido como o de marionetes.

A coisa se intensifica. Dois curas de bicicleta avançam de braços dados. Monjas deslizam em patins. Há “variações sacristanescas” numa cachoeira de rendas brancas.

Na plateia, uma beata discorda. “É o mundo que deve seguir a Igreja, não a Igreja que deve seguir o mundo.”

Mas ela ainda não viu nada. Roupas de arcebispo surgem feitas de mosaicos espelhados, imitando tetos de discoteca. Cardeais se emplumam como destaques de Carnaval. 

Um carro alegórico de esqueletos condenados ao Inferno contrasta com estolas de drag queen, casulas psicodélicas, sobrepelizes de diva hollywoodiana, mitras como foguetes espaciais. Figuras cadavéricas da hierarquia vaticana se enfeitam como cassinos em Las Vegas. 

Por fim, ressuscita-se o papa Pio 12: é um boneco de cera elevado numa gigantesca panóplia dourada, com um sol de Montezuma a glorificar todo o absurdo.

Em “Julieta dos Espíritos”, de 1965, Fellini já tinha explorado o mundo bizarro, arbitrário e assustador
do catolicismo tradicional. 

Ao mesmo tempo, a nostalgia sempre foi o forte do diretor italiano —de modo que, em “Roma”, o desfile
de modas não se traduz numa mensagem simples.

De um lado, satiriza-se a tentativa de modernizar a Igreja; de outro, não se levam a sério as tentativas de voltar ao conservadorismo de Pio 12. A maluquice de supermercado americano, nas roupas exibidas, não é afinal mais insana que a fantasia barroca de outros séculos. E, quanto mais extravagante e monstruoso, mais Fellini se entrega a um fascínio horrorizado.

Lembrei-me dessas cenas de cinema ao ter notícia de uma recente iniciativa do Vaticano. Trata-se do rosário eletrônico, ou e-rosary, se você quiser procurar no Google.

É como um relógio digital, a prender no pulso ou colocar numa prateleira, entre velas e santinhos. Feito de plástico branco, tem a forma de um triângulo, podendo vir com uma imagenzinha bem tradicional da Virgem Maria incrustada no topo.

Segundo o site Talking Watch Shop, o aparelho simula a função do rosário utilizando a tecnologia de voz digital. Há três modos de recitação. Um permite que se alterne entre o aparelho e a pessoa que reza, outro que simplesmente conta as suas rezas, e o “follow me”, possibilitando que você repita os dizeres do aparelho.

O monsenhor Lucio Ruiz, secretário do Dicastério da Comunicação do Vaticano, dá explicações para os que consideram repetitiva a prática de rezar tantas vezes o Pai Nosso e a Ave Maria.

Lembra que não há frase mais repetida, todos os dias, do que o “eu te amo” entre pessoas que se querem. “E o amor”, diz ele lindamente, “não se repete, é sempre novo”.

A argumentação religiosa, que nunca me convence, tem dessas saídas admiráveis. 

Um rosário eletrônico —eis a tecnologia a serviço do que há de mais tradicional e, a meu ver, ritualisticamente oco no catolicismo. A modernidade e o medievalismo coexistem.

Ou, talvez, como os motociclistas de Fellini, não tenhamos saído do lugar. Diante do computador, seguindo o Instagram ou clicando em qualquer bobagem, cumprimos diariamente a tarefa de rezar pelas contas de um rosário parecido.

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