Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu Coronavírus

Idas e vindas de Bolsonaro são mais despreparo do que cálculo político

Cada contradição em suas atitudes é como se ele próprio se beliscasse para verificar que não está sonhando

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Primeiro, ele diz que é ex-atleta e vai pegar, no máximo, uma gripezinha. Depois se corrige, faz novo pronunciamento; reconhece que a Covid-19 é problema. Numa terceira vez, equilibra-se melhor e aponta, corretamente, que há dois problemas, o vírus e o desemprego, sendo o caso de tomar medidas contra os dois.

Ilustração com o gráfico de simulação de casos de Covid-19 em que uma linha mostra o contágio em pouco tempo com uma curva acentuada e a outra linha mostra o contágio mais lento e a curva mais baixa. Na curva com pico alto, há um carrinho de montanha-russa subindo.
André Stefanini/Folhapress

Seria, digamos, uma marcha forçada rumo ao centro e à sensatez, depois de um início ridículo e irresponsável.

Mas o percurso de Bolsonaro nessa crise não tem essa simplicidade. Depois do pronunciamento mais “sensato” (o da cloroquina...), o presidente saiu de casa e distribuiu cumprimentos a correligionários.

Tinha tentado divulgar uma peça publicitária oficial estimulando a população a manter suas atividades normais, contra qualquer política de isolamento. Foi impedido na Justiça; aí faz uma pequena manifestação na frente da farmácia.

Apresenta-se numa reunião ministerial de estilo sério-cômico, com todos posando de máscara cirúrgica; pouco tempo depois, sem máscara, confraterniza com seus admiradores.

Cada recuo na TV é acompanhado de nova patada no Twitter; cada passo rumo ao centro vem junto de um coice para a direita.

Tem sido assim o tempo todo. O presidente estimula ações contra o Congresso e o Judiciário; volta atrás e republica alguma barbaridade nas redes sociais.

Podemos pensar que seu método é o da tentativa e erro e que seu objetivo é o de vencer pelo cansaço.

Para muita gente, não é impossível que Bolsonaro, ele próprio, tenha alguma racionalidade, e que esteja conduzindo um jogo estratégico para minar o sistema político.

A meu ver, a psicologia de Bolsonaro não funciona assim.

Na verdade, acho que ele nunca acreditou que poderia ser de fato presidente. Cada contradição em suas atitudes é como se ele próprio se beliscasse para verificar que não está sonhando.

Não, ele não está sonhando. É patologia mesmo. Às vezes, ele acha que tem de ser presidente: faz cara séria, espreme o cérebro para ler direito o teleprompter. O esforço torna seus olhos vítreos; o queixo, às vezes, dá trancos como se resistisse às puxadas de um bridão.

Depois, relaxa. Passa a agir como o típico babaca de internet, compartilhando a piada inútil, a mentira aberrante, a intervenção quadrúpede.

O antropólogo Roberto da Matta desenvolveu uma célebre oposição entre a “casa” e a “rua”. Estaríamos divididos entre a intimidade doméstica e o convencionalismo público, entre o “para inglês ver” e o “na minha casa mando eu”.

Se isso é típico apenas do Brasil, não sei. O fato é que atualmente as coisas não se resumem à “casa” e à “rua”.

A internet criou um espaço que é ao mesmo tempo público e privado. O que se diz em particular se torna disponível para todos verem. Quem escreve no Twitter e no WhatsApp está dentro e fora de casa.

E é assim que surge uma terceira entidade, que me lembra o sistema de esgoto das cidades coloniais. Temos a casa, a rua e a vala.

O dejeto doméstico é atirado para a calçada, formando um córrego de imundície. Quem estiver passando que olhe onde pisa. E, cuide-se, além disso, para não receber o conteúdo de um penico na cabeça.

Na internet, os ministros e o chefe de Estado se comportam como querem. Na vida oficial, que corresponde à “velha política”, não sabem direito o que fazer.

Autoritário, direitista e rústico, o presidente não foge, por certo, ao perfil do militar típico. Ele também é provocador, palhaço e bagunçado; há desses, imagino, na caserna.

Bolsonaro tem uma agravante. É um ex-militar, notório pela insubordinação. Não consegue viver de outro modo. Seu guru diz uma coisa, ele repete. Dizem que é cretinice: ele se corrige. Cumprimentam-no por ter entrado no rumo: ele inventa uma transgressão.

Paulo Guedes era seu “posto Ipiranga”. Mas é como se ele também buscasse informações no botequim, no barbeiro, na casa do pastor. Gosta de obedecer: obedece ao filho, ao vovô da carabina, ao banqueiro, ao general.

Logo em seguida, cai em si — e resolve contestar o que lhe ordenaram. “Opa! Como assim? Aqui mando eu!”

Mas não sabe o que quer. É caótico, inseguro e despreparado; o defensor de uma “ordem” mantida a bala vive na bagunça e na molecagem. Defende que a população vá para a rua; dizem-lhe que é melhor ficar em casa. Na dúvida, ficar sapateando na vala é mais divertido.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.