Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Em meio à pandemia, gurus de esquerda deliram ao lado de bolsonaristas

Com a crise do coronavírus, luminares do 'pensamento crítico' entram em parafuso

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A direita, como sabemos bem, tem os filósofos que merece. Falei disso na semana passada —a vontade bolsonarista de negar os perigos do vírus se relaciona com seu obscurantismo face ao aquecimento global, aos direitos humanos, ao multiculturalismo.

Mas é triste verificar que alguns dos mais célebres gurus da esquerda são capazes de grandes esparrelas neste momento. Leio um livro em espanhol, chamado “Sopa de Wuhan”, que se pode baixar pelo site medionegro.org.

Ilustração de cabeça sem rosto com círculos concêntricos em preto e vermelho. O fundo também é preenchido pelos círculos pretos e vermelhos
André Stefanini/Folhapress

Ali, há um artigo do filósofo italiano Giorgio Agamben, escrito em 26 de fevereiro, falando da “invenção de uma epidemia”. Ele cita um documento científico segundo o qual o vírus provoca sintomas leves (uma espécie de gripe) em 80% ou 90% dos casos, e que só 4% dos contaminados terminam precisando de cuidados intensivos.

É claro. A diferença é que com um vírus novo, em tese toda a população fica infectada. Numa cidade de 10 milhões de habitantes, esses 4% significariam 400 mil pessoas que teriam de entrar na UTI. Bem mais, imagino, do que os leitos disponíveis.

Agamben não atinou com isso; vai adiante. Uma vez que com o coronavírus se suspende a liberdade de ir e vir, institui-se um “estado de exceção” —o tema está entre os favoritos do célebre pensador.

Na verdade, diz ele, há vários anos o poder constituído já vinha instituindo um pânico coletivo que legitimasse a sua crescente vigilância sobre os cidadãos. Para Agamben, esgotou-se a ameaça do terrorismo “como causa das medidas de exceção”, e assim “a invenção da epidemia pode oferecer o pretexto ideal para estendê-las para além de todos os limites”.

Não seria mais fácil forjar alguns atentados terroristas falsos?

Seja como for, deixo registrada minha antipatia pelo uso da palavra “invenção”. Como “cartografia”, é uma palavra que a esquerda acha bonita.

Assim, em vez de se falar na luta pelos direitos humanos, da luta pela democracia, fala-se em “invenção” dos direitos humanos, “invenção” da democracia. Ótima teoria para intelectuais, naturalmente —o que inventarmos passa a valer na realidade social. O velho Marx de “A Ideologia Alemã” daria boas risadas diante desse modismo.

Passo a outro guru presente na coletânea de artigos, Alain Badiou. Simpaticamente, ele se recusa a fazer grandes previsões e se dispõe a analisar alguns “fatos simples”. Primeiro fato: a notória imundície dos mercados chineses ao ar livre.

Espero sinceramente que nenhuma epidemia comece na França, e que os compatriotas de Badiou não sejam responsabilizados por sua “notória” aversão ao banho ou pelo estranho hábito de
comerem rãs e caramujos.

O segundo “fato” apontado por Badiou é “o acesso do capitalismo de Estado chinês a um estágio imperial, ou seja, a uma presença intensa e universal no mercado mundial”.

Estamos visivelmente no plano da fraseologia. Mais viagens, mais vírus sendo transmitidos —até aí, tudo bem. Que tal dizer que a “prosperidade” da China aumentou o acesso de jovens chineses às universidades de todo o mundo e permitiu o turismo de sua classe média?

Não teria graça. Perdemos a oportunidade de fazer “pensamento crítico” e de pronunciar a palavra mágica que é “capitalismo”.

Por falar em capitalismo, não será a primeira vez que a esquerda aproveita para dizer que o sistema está com os dias contados. No livro,

Slavoj Zizek aposta nisso com algum ceticismo; David Harvey e Franco “Biffo” Berardi parecem mais confiantes.

Veremos. O livro termina com novo artigo de Agamben, publicado um mês depois de sua olavice de esquerda. Claro, ele não faz nenhuma autocrítica (algo de que a esquerda não gosta, como se sabe).

Aponta, isso sim, outra consequência do coronavírus: “o claro colapso de cada crença e da fé comum”.

“As pessoas já não creem em nada, exceto na nua existência biológica que deve salvar-se a todo custo.”

Não é bem assim: creem que existem vírus e pandemias. Mesmo que não conheçam o nome, creem majoritariamente em Pasteur, em Semmelweis e na medicina.

O guru dá um último sorriso. Afirma que o vazio provocado pela falta de religião foi ocupado por algo que se tornou “a religião de nosso tempo: a ciência”. Bela forma de somar uma banalidade reacionária à extravagância de esquerda.

Para aguentar tanta charlatanice, é preciso a paciência de um santo. Ou de um chinês, quem sabe.

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