Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Num país como o nosso, Celso Furtado me parece incomparável

No centenário do economista, seus 'Diários Intermitentes' dão lição de integridade

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Comemora-se, sem muito alarde, o centenário de nascimento de um dos maiores brasileiros do século 20, o economista Celso Furtado (1920-2004).

Num país em que a esquerda tantas vezes se lambuzou no oportunismo e no deboche macunaímico, e em que a direita é um circo de torturadores e de cínicos, o exemplo pessoal e intelectual de Furtado
me parece incomparável.

Leio seus “Diários Intermitentes”, editados não faz muito tempo pela Companhia das Letras, que conta com excelentes notas de Rosa Freire d’Aguiar, além de algumas fotos selecionadas do seu arquivo pessoal.

Celso Furtado era daquelas pessoas cuja simples fisionomia já impunha respeito. A testa muito larga, os lábios espremidos, os olhos desencantados e quase sem cor, transmitiam uma impressão de imperturbável e superior seriedade —seria um rosto quase granítico, se não palpitasse, por trás de tudo, um sentimento não sei se de tristeza ou de compaixão.

Retrato de homem com cabelos curtos pretos vestrindo terno preto e gravata pretos e camisa branca. O fundo é laranja com bolinhas brancas
Publicada nesta quarta-feira, 5 de agosto de 2020 - André Stefanini/Folhapress

A tristeza se sente desde as primeiras páginas dos “Diários”, escritas quando Furtado tinha 17 anos, em João Pessoa. “Aquilo que se chama amor não existia para mim. Estive em casa todo o dia, saindo apenas à noite”, diz ele sobre o dia de seu aniversário.

Mais do que na ditadura de 1964, o Estado Novo parece ter contribuído para criar nos jovens uma espécie de vazio existencial: os primeiros poemas de Vinicius de Moraes, as profundidades de Lúcio Cardoso, o próprio “Angústia”, de Graciliano Ramos, não são estranhos aos comentários feitos por Celso Furtado em 1938.

“Cada vez eu me convenço mais da tolice de viver. Eu estou aqui. Não tenho preocupações. Nenhuma paixão me tortura o espírito. Tudo diz que sou feliz nesse momento. O ócio fere-me a alma.” Até mesmo sua participação na Segunda Guerra Mundial, como aspirante a oficial da FEB, não conheceria ações significativas. “Esta guerra foi para mim pouco mais que uma viagem de turismo.”

Mas o futuro criador da Sudene, ministro de João Goulart e autor de clássicos sobre o subdesenvolvimento logo encontraria com que se ocupar. Estudaria economia na Sorbonne e em Cambridge. Uma curta página do diário, escrita na Inglaterra em 1947, mostra o valor da análise “estruturalista” ao prever com clareza as crises e o relativo declínio que aconteceriam com a economia daquele país nas décadas seguintes.

Seu apogeu como intelectual e homem público, nas décadas de 1950 e 1960, rende capítulos que se lamenta não serem mais longos. A crise de 1964, em especial, o manteve atarefado demais para escrever.

Naturalmente, ele seria perseguido como “comunista” por toda a vida. É curioso, entretanto, como cita Marx muito de longe, sem entusiasmo, e se revela extremamente duro com relação a figuras como dom Helder Câmara (“autêntico tartufo”) ou o teórico isebiano Roland Corbisier (“não está preparado para resolver nenhum problema”). Ao Partido Comunista, reserva tanto desprezo quanto para com o neoliberal Roberto Campos.

O diário é bem mais detalhado entre 1986 e 1988, quando Furtado ocupou o Ministério da Cultura. Seu papel na formulação da Lei Sarney (que viria depois a se tornar a Lei Rouanet de incentivo
à cultura
) não ocupa muito espaço. O principal, naqueles anos dificílimos, foi sua atuação como mediador entre Ulysses Guimarães e José Sarney —especialmente quando o então presidente da República tentou minar o trabalho, praticamente concluído, da Assembleia Constituinte.

A redemocratização pactuada e cuidadosa que se impôs no Brasil, em particular depois da derrota das Diretas Já em 1984, assegurou uma relativa hegemonia de duas forças contra as quais Celso Furtado lutara, sem sucesso, a vida inteira: as oligarquias regionais e os representantes do capital financeiro.

Encerrando sua participação política no governo e no PMDB, Furtado ficou mais uma vez sozinho —enquanto, paradoxalmente, não paravam os convites e os contatos internacionais. Ele se encontra com líderes do mundo todo, de Henry Kissinger, dos Estados Unidos, a Julius Nyerere, da Tanzânia. Revê colegas de Cambridge, como o Nobel de economia Amartya Sen.

Diante da morte, diz que ninguém tem razão para temê-la quando realizou “plenamente suas potencialidades” e sorveu “o cálice da vida sem inibições”. Sem medo, principalmente: poucos, como Celso Furtado, poderiam dizer isso sem parecer exagero ou pretensão.

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