Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Sophie Calle xeretou a vida de hóspedes de hotel e expôs segredos em livro

Minutos que ela passou no quarto 30, e as poucas fotos que registrou, valem por um conto ou uma pequena novela

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Durante três semanas, entre fevereiro e março de 1981, a fotógrafa e artista plástica francesa Sophie Calle trabalhou como camareira num hotel em Veneza. E fez o que muita gente gostaria de fazer –xeretou a vida dos hóspedes.

Levou um gravador e uma máquina fotográfica. O resultado, agora publicado em inglês pela editora Siglio, é o livro "The Hotel". Trata-se de um pequeno volume encadernado em tecido que parece
de colcha, repleto de fotos e pequenos comentários.

Não que ela tenha encontrado segredos sensacionais; justamente, a banalidade de cada hóspede é o que dá ao livro seu interesse e sua carga de significados.

No quarto número 30, por exemplo, Sophie Calle encontra as coisas habituais: uma mala de mão, com uma calça cinza, um par de meias, uma camisa social listrada, uma nécessaire com barbeador, creme de barba, pente e loção. Um passaporte.

A cama de casal foi usada de um lado só. Na gaveta, um passaporte italiano, uma caixa de cigarrilhas, alguns envelopes, uma foto antiga, uma caixinha de couro com as iniciais "M.L." em letras douradas. Uma carteira.

Sophie Calle encontra tempo para ver o que há dentro. Cinco fotos iguais de passaporte de uma mulher loira. Uma conta, datada de dois anos antes, do mesmo hotel, em nome do senhor e da senhora L.

E, no espaldar de uma cadeira, uma camisola de seda, "que claramente nunca foi usada". A autora conclui: o hóspede esteve aqui há dois anos, com a mulher; voltou agora, sozinho. Com a camisola na mala. "A reserva dele era só para uma noite", diz Sophie Calle. "Ele está saindo do hotel hoje. Vou arrumar o quarto mais tarde."

Os minutos que ela passou no quarto 30, e as poucas fotos em preto e branco que ela tirou, valem por um conto ou uma pequena novela. Não seria grande coisa, esteticamente, se pudéssemos ver o rosto do hóspede ou acompanhar a história desde o começo.

Uma mala cheia de objetos
Ilustração para a coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

O bonito da coisa, acho, está no silêncio, na mudez dessa descoberta, no quarto impessoal de um hotel qualquer. A completa falta de surpresa —passaporte, calça cinza, loção de barba— é transpassada pela conta antiga, pelas fotos, pela camisola de seda, como por um golpe de faca.

Sophie Calle nada mais tem a comentar. E o hotel, que em geral associamos a um lugar de passeio, ou de passagem, surge como um ponto final, o túmulo de uma história sem nome.

Alguns hóspedes ficam mais tempo. No primeiro dia, o homem do quarto 25 comprou laranjas e maçãs. Dois dias depois, o lixinho está cheio de cascas. O diário dele traz anotações: "Hoje fomos almoçar no Harry’s Bar [...] Tomei uma cerveja na praça. Um carinha quis me dar uma cantada. Acho que vou ter algum sonho ruim com ele hoje à noite".

Temos quase a sensação de um hospital, em que um paciente morre, dando lugar ao próximo.

Tudo, sem dúvida, é igual, ou quase. As malas, por exemplo. Cada um tem a sua; é raro encontrar uma mala gêmea na esteira do aeroporto. Mas são todas a mesma coisa: um volume com rodinhas e alça.
Sapatos: num quarto, os de homem de um lado, os de mulher do outro. Casais; às vezes, no corredor, Sophie Calle escuta a conversa. No quarto 24, ela já tinha encontrado um livro na cabeceira: "Parto sem Dor". Agora, a hóspede lê em voz alta "‘na hora de empurrar, você inspira fundo". O marido ri.

Coisas muito básicas —nascimento, morte, fome, sede, sono— estão ali, em sua igualdade universal. Mas há os bagunceiros e os organizados; os americanos e os suíços; os velhos (com aparelho de medir pressão) e os jovens. No quarto 26, duas mulheres, um ursinho de pelúcia, três revistas pornográficas.

E os mistérios: alguém tira o espelho da parede e larga-o no chão. Um martelo na prateleira do armário. Luvas de jardinagem.

As coisas que se deixam: uma pata de lagosta entre lençóis; uma torneira aberta; a lata de lixo dentro da banheira.

Sophie Calle fotografa, anota, arruma e fecha a porta. Talvez haja mais felicidade nesses hóspedes do que ela consegue mostrar. Mas em cada quarto, em cada pessoa, o que sobressai para mim é a bagagem de cada um, meio desordenada e mole, esquecida num canto, mas pronta para ser levada até o próximo ponto da viagem.

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