Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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O 'cidadão de bem' tem suas incertezas expostas por Vladimir Jankélévitch

'Em Algum Lugar do Inacabado', novo livro do filósofo francês, mostra que sinceridade pode virar hipocrisia

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Uma dupla boa notícia chega do mundo editorial. Fico feliz de saber que a editora Perspectiva, responsável pela formação de gerações de universitários no Brasil, continua em atividade.

E, três anos depois da morte de seu idealizador, Jacó Guinzburg, a clássica coleção Debates lança mais um livro do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985).

O professor e editor Jacó Guinsburg na sede da Editora Perspectiva em São Paulo - Lenise Pinheiro/Folhapress

Trata-se de um desses autores que nem todo mundo conhece, mas que quem conhece fica fazendo sempre propaganda. Com muitos escritos sobre música clássica (Ravel, Debussy, Chopin, Fauré),
Jankélévitch é um mestre das nuances, das imprecisões, de uma espécie de "não sistema" em que as noções do "quase-nada" e do "não-sei-o-quê" adquirem importância essencial.

O livro que saiu agora pela coleção Debates, com ótima tradução, prefácio e notas de Clóvis Salgado Gontijo, chama-se "Em Algum Lugar do Inacabado" e reúne as longas sessões de entrevista entre o filósofo e sua aluna Béatrice Berlowitz. Jankélévitch já estava no fim da vida, de modo que os diversos temas de seu pensamento (não só a música, mas a moral, o tempo, a morte, a ironia) são revisitados, ajudando a leitor a ter uma noção geral do que ele escreveu.

Vale dar alguns exemplos.

Lá pelo meio do livro, ele estabelece ligações fascinantes entre a moral e o fenômeno do tempo. Retomando as preocupações de "O Paradoxo da Moral" (publicado há um bom tempo pela editora Martins Fontes), Jankélévitch questiona as certezas, hoje em dia tão comuns, que se constroem em torno do "cidadão de bem".

Se faço uma boa ação, se sigo um instinto absolutamente livre e generoso, se sou honesto e sincero comigo e com os outros, isso se reduz, para Jankélévitch, a um puro instante, a uma centelha. Basta que eu tome consciência de estar sendo sincero, já perdi aquela espontaneidade; já estou construindo um
"tipo", já estou sendo hipócrita…

Haveria aí, quem sabe, uma ponta de polêmica com os rigores éticos que seu contemporâneo, Jean-Paul Sartre, não cessava de exercitar. Mas Jankélévitch evita o diálogo com pensadores que poderiam estar bem próximos de seu pensamento, como Adorno ou Wittgenstein. Talvez por isso, infelizmente, Jankélévitch tenha ficado meio como um "marginal", um "inclassificável", no pensamento do século 20.

Mas, voltando ao que ele diz sobre a moral, claro que existem o certo e o errado, o bem e o mal.

Perseguido pelo nazismo, Jankélévitch "cancelou", depois da guerra, toda referência ao pensamento germânico; recusou, inclusive, as reparações em dinheiro oferecidas aos judeus pelo governo alemão. Ocorre que a nossa experiência, o nosso "lugar" no mundo moral é sempre fugidio. Assim, o perdão é uma coisa bonita; mas, ao mesmo tempo, é impossível. Trata-se de um problema insolúvel. "O perdão", diz Jankélévitch, "ou não tem sentido ou consiste precisamente em perdoar o mal, isto é, o que é inexcusável e sem circunstâncias atenuantes: ele é feito para isso, esse é o seu ofício de perdão".

Ele continua: "contudo, ao mesmo tempo, o mal sempre retoma o poder". Pois o mal que se fez, por exemplo, às vítimas do nazismo é incurável, infinito. Não pode ser apagado.

Não sei se há nisso uma contradição, mas são reais, sem dúvida, as dificuldades que surgem para quem quiser permanecer fixo, imóvel, num só lugar.

O que vale para a moral vale também para a estética. O grande instrumentista apresenta uma versão genial de determinada obra clássica. Mas se, no instante seguinte, ele toma consciência de que está tocando bem, tudo se perde: ele irá adotar uma pose, transformará tudo em artificialidade e truque —como a pessoa que, ao contar uma piada, já acha que está sendo muito engraçado…

Ilustração representando um relógio sobre o semblante dividido de um rosto, sendo cada metade numa cor diferente
Ilustração publicada em 21 de dezembro de 2021 - André Stefanini

No que se mostra como uma forte influência de Bergson, a atenção de Jankélévitch se volta para tudo o que é instantâneo, incapaz de estabilizar-se no espaço. Ele escreve lindamente sobre a noite: com ela, "o silêncio faz aliança". Mas logo se descobre que "o silêncio se decompõe numa infinidade de leves estalidos". Os quais "não rompem o silêncio, mas o tornam, ao contrário, mais silencioso".

É, ainda uma vez, o paradoxo da consciência. Para sentir algo, temos de abrir nossa subjetividade. Mas, ao saber que estamos sentindo, nossa subjetividade se transforma em objeto. O "eu" vira "ele", e assim desaparece. Mas nasce de novo, logo em seguida.

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