Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu aborto maternidade

Annie Ernaux faz relato desesperado e seco em 'O Acontecimento'

Livro da Nobel Annie Ernaux reprime subjetividade e economiza palavras ao falar do tema

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Quando alguém morre, o sentimento das pessoas é muitas vezes mais de surpresa do que de dor. "Como assim, morreu? Falei com ele a semana passada!"

O fato não admite explicação. Fulano estava aqui, agora não está mais. Sofrendo ou não sofrendo, nossa reação é também de surpresa, de choque intelectual.

Não se fala tanto disso a propósito de um nascimento, mas acredito ter experimentado a mesma impressão de incompreensibilidade, de mistério, quando meus filhos nasceram.

Duas pessoas entram na maternidade, com uma malinha. Dali a uns poucos dias, saem não duas, mas três pessoas. E a malinha. "Aquilo", o bebê, não existia; agora existe.

Colagem com a silhueta do perfil de uma pessoa com o cabelo preso em um rabo de cavalo no centro da imagem. No lado esquerdo, há a mesma silhueta apenas em contorno branco. Nas laterais, há uma foto de uma mão em preto e branco de cada lado, os dedos estão direcionados para o centro. Há círculos e linhas em preto, branco e bege espalhados pela área e o fundo é laranja escuro.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

Claro que a experiência masculina, nesse sentido, é mais intensa. A mãe deve ter percebido a presença do bebê dentro dela, alguma coisa já estava vivendo lá. Para o homem, a ligação entre a barriga da grávida e o bebê recém-nascido não é tão direta.

A barriga era "lá dela"; já o bebê é posto nos braços do pai, como um presente, um pacotinho, um peixe dourado fora do aquário de vidro. Dá bem para acreditar que foi uma cegonha quem deixou a criança para você.

Em boa hora chega para Annie Ernaux o Prêmio Nobel de Literatura. Seu livro mais famoso, "O Acontecimento", saiu neste ano pela editora Fósforo, com tradução de Isadora Pontes. Torna-se mais do que nunca recomendável com a onda antiaborto que toma conta dos Estados Unidos, com reflexos óbvios no Brasil.

É um texto curto (74 páginas), que para mim nem mesmo se inscreve no gênero autoficção. Trata-se mais de um depoimento, ao mesmo tempo desesperado e seco, contando a luta da autora para fazer um aborto clandestino, na França de 1964.

A interrupção voluntária da gravidez só seria legalizada, por lá, em 1975. Quando Annie Ernaux ficou grávida, aos 23 anos, o procedimento era arriscadíssimo e, pelo que ela conta, quase inacessível. É como se tudo se passasse em 1910, em 1860, ou no Brasil de 2022.

O pior é a insensibilidade, a brutalidade de todos que a rodeiam. Com a família católica do interior, nem pensar em conversa. Mas e o pai da criança? Não tem nada a dizer, nem se dispõe a ajudar financeiramente a operação. Amigas, colegas de faculdade, olham-na como um ser estranho.

O aborto é feito, vem uma hemorragia, Annie tem de ser levada a um hospital, e a tratam malíssimo lá também. O médico faz uma piada estúpida na mesa de operações; a enfermeira é uma égua.

Talvez isso não se deva tanto à época em que "o acontecimento" se deu, e mais à rispidez dos franceses em geral. Em "Na Pior em Paris e Londres", George Orwell conta a diferença que existia, nos anos 1930, entre os médicos da rede pública francesa e os da Inglaterra.

Como depoimento, o livro de Annie Ernaux merece ser lido. Como obra literária, o caso é mais complicado.

Tenho dificuldade em chamar o livro de autoficção porque a autora parece determinada a eliminar do seu relato qualquer sinal mais visível de subjetividade. Não que tudo não seja subjetivo: ela fala das dificuldades que tem para rememorar os fatos, aponta um ou outro detalhe que a marcou especialmente naqueles dias, associa suas memórias ao que está vivendo no momento em que escreve.

Mas é como se, por um ato voluntário, Annie Ernaux eliminasse a "experiência interior" das páginas de seu livro. Tudo parece narrado na terceira pessoa, sem grande espaço para conflitos íntimos, dúvidas, remorsos, alívios.

Quando vai chegando a hora do aborto, a autora escreve: "Ainda não sei quais palavras virão para mim. Não sei o que a escrita está trazendo. Queria atrasar esse momento, ficar um tempo ainda nessa espera. Medo, talvez, de que a escrita dissolva estas imagens, como as do desejo sexual que se apagam instantaneamente depois do orgasmo".

Tudo é contado sob um véu de opacidade, como o fato da morte, como o fato do nascimento, como aquele outro fato entre esses dois. Não por acaso, é tão neutro e frio o título desse livro: "O Acontecimento".

Talvez esteja nisso, e naquela frase que citei acima, o segredo estético do livro. Essa espera para contar o aborto, essa impossibilidade de achar as palavras para a própria experiência, essa luta da autora com seu próprio objeto são em si mesmas espécie de gravidez —indesejada, estranha e incômoda, da qual a escrita, como num aborto, se desvencilha.

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