Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

Abrindo novas janelas para os céus

Quando Galileu apontou seu telescópio para os céus em 1609, nossa visão cósmica mudou radicalmente. Ninguém, nem ele, podia ter previsto o que iria ocorrer. Invisíveis ao olho nu, as observações de Galileu alavancaram uma mudança de visão de mundo, além do cosmo aristotélico que dominara o pensamento ocidental por mais de dois mil anos: montanhas e crateras na lua, fases do planeta Vênus, quatro luas orbitando Júpiter, manchas solares etc.

Após Galileu, telescópios cada vez mais poderosos foram construídos, provando que o universo era ainda mais belo e surpreendente do que se podia imaginar.

Aurora boreal ao fundo de um telescópio
O telescópio IceCube, instalado no Polo Sul e em operação desde 2010, detectou a fonte de neurotrinos de alta energia - ICECUBE/NSF

Até aproximadamente meados do século 20, a maior parte das observações astronômicas eram obtidas na porção visível do espectro eletromagnético, isto é, a luz que nossos olhos podem ver, as cores do arco-íris do vermelho ao violeta. Podemos visualizar telescópios como sendo “baldes de luz”, instrumentos capazes de capturar a luz vinda de objetos distantes, criada por diferentes fenômenos físicos, da reflexão da luz do sol por Júpiter e outros planetas e luas à dança dramática da radiação com a matéria na vizinhança de buracos negros no centro de galáxias distantes.

Uma enorme expansão da capacidade dos telescópios ocorreu nas últimas décadas, com instrumentos capazes de capturar todos os tipos de radiação eletromagnética, além das que nossos olhos podem ver: dos comprimentos de onda mais longos aos menores, a lista inclui ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, [luz visível vem aqui], ultravioleta, raios x e raios gama. Cada um desses tipos de radiação é gerado de forma diferente, por exemplo, através das reações de fusão nuclear nas estrelas.

Até apenas dois anos atrás, essa era a astronomia conhecida, focada na observação de eventos e objetos astronômicos através do espectro eletromagnético. (O que já é muito, sem dúvida!) Em setembro de 2015, uma nova janela para os céus foi aberta com a primeira detecção de ondas gravitacionais, a vibração extremamente sutil do próprio espaço criada por eventos que envolvem campos gravitacionais dramáticos. Essa primeira detecção, por exemplo, foi devida à colisão de dois buracos negros enormes, de 36 e 29 massas solares.

Dois anos mais tarde, em outubro de 2017, outra janela foi aberta com a detecção da colisão de duas estrelas de nêutrons. É bom lembrar que estrelas de nêutrons e buracos negros são restos de estrelas “mortas”, que esgotaram sua reserva de combustível (essencialmente, o hidrogênio). (Explico as suas propriedades em detalhe em meu livro "O Fim da Terra e do Céu". Rapidamente, estrelas de nêutrons são objetos com dimensões de uma montanha e massa semelhante ao sol, portanto, extremamente densos e compactos.)

A colisão das estrelas de nêutrons foi detectada como ondas gravitacionais e, também, observada em todas as janelas do espectro eletromagnético por mais de 70 observatórios espalhados pelo mundo (e no espaço). Essa combinação de dois tipos de observação astronômica inaugurou a era da astronomia “multi-mensageira”:

Os mensageiros, aqui, são as vibrações do espaço e os vários tipos de radiação eletromagnética produzidos pela colisão, cada qual contribuindo um pouco de informação sobre os detalhes do evento.

Foi, portanto, com grande entusiasmo que astrônomos e físicos anunciaram, na semana passada, a observação conjunta de mais uma janela multimensageira, agora combinando ondas eletromagnéticas e partículas subatômicas que viajaram desde o evento celeste até colidirem com detectores na Terra. Essas partículas, em geral, parte dos chamados raios cósmicos, consistem principalmente de prótons, elétrons e núcleos atômicos leves, oriundos principalmente do sol ou, ocasionalmente, de fontes mais exóticas.

Outra partícula que faz parte dos raios cósmicos é o elusivo neutrino. Com massa extremamente pequena e sem carga elétrica, neutrinos (existem três tipos) são muito difíceis de serem detectados, apelidados por isso de partículas fantasma, capazes de atravessar a matéria sólida sem uma colisão sequer. A cada segundo, bilhões de neutrinos vindos do sol atravessam seu corpo, sem que você tenha qualquer ideia disso. A realidade vai muito além do que percebemos.

No dia 22 de setembro de 2017, um neutrino atingiu um detector do laboratório IceCube, enterrado sob o gelo na Antártica. O incrível, aqui, é que este neutrino tinha uma energia em torno de dez vezes maior do que a das partículas mais energéticas que produzimos nos aceleradores aqui na Terra, como o Grande Colisor de Hádrons, descobridor do bóson de Higgs. Os cientistas do IceCube conseguiram determinar a posição aproximada da fonte deste neutrino, e enviaram os dados a vários grupos de astrônomos no mundo inteiro.

Alguns dias após a detecção do IceCube, telescópios de raios gama e raios x confirmaram emissão de radiação vinda da mesma região no céu. Dias depois, telescópios óticos (luz visível) e de ondas de rádio confirmaram a fonte como sendo um blazar em torno de 4 bilhões de anos-luz de distância. Os blazares são formados por buracos negros gigantescos no centro de galáxias, que atraem a matéria a sua volta, criando uma espécie de redemoinho celeste.

O giro das partículas com carga elétrica cria um enorme campo magnético na direção perpendicular ao redemoinho. (Visualize um CD com um lápis no meio.) Se o campo magnético apontar na nossa direção, algumas das partículas podem chegar até nós.

Esse neutrino solitário viajou por 4 bilhões de anos, deixando sua fonte distante quando a Terra era ainda um planeta bebê, até terminar sua jornada num detector enterrado sob o gelo perto do polo sul. Os céus são, literalmente, uma máquina do tempo voltada para o passado.

Em apenas três anos, a astronomia se uniu à física gravitacional e de altas energias para abrir novas janelas para os céus. A malha de instrumentos diferentes espalhados pelo mundo gera informação complementar, cada um contribuindo uma peça diferente do quebra-cabeças, produzindo conjuntamente um mapa mais detalhado da realidade física. Se essa tendência continuar, podemos nos preparar para uma década cheia de grandes descobertas, algumas incluindo surpresas inusitadas.

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