Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Marcelo Leite
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Proibicionismo é doença infantil do conservadorismo

O ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (MDB-RS), respondeu quarta-feira (8) na página Tendências/Debates da Folha à minha coluna do domingo anterior (4), "Dependência química não é doença". O artigo ministerial tinha o título "Dependência química é doença".

A coluna dava destaque para a noção pouco convencional (e muito convincente) do neurocientista Marc Lewis de que o tratamento da dependência química precisa livrar-se do conceito de doença para avançar.

A ideia está no centro do livro "A Biologia do Desejo". Terra não parece ter lido a obra, ou leu com viseiras, as mesmas empregadas ao abordar a coluna. Cometeu, por isso, vários equívocos e falácias.

O ministro diz que defendi a manutenção da política atual sobre drogas do Brasil, o que não é verdade. Como por aqui vigora um modelo proibicionista, que criminaliza até o porte pessoal de maconha (embora não se prescreva pena de prisão), defendo não a manutenção dessa política, mas sua reforma.

O ponto de discórdia está na posição favorável às políticas de redução de danos (como distribuir seringas e dar moradia para dependentes), enquanto o emedebista favorece a abstinência assistida.

Nada contra a abstinência. Nem muito menos contra assistir quem a busca, pois a dificuldade se revela enorme, atravancada como é por alterações estruturais no cérebro dos dependentes mediadas por dopamina (até aqui concordamos).

Os problemas começam quando Terra, para reforçar a noção de doença malévola, qualifica essas alterações como permanentes. Ora, como seria então possível sua reversão, pressuposto de qualquer tratamento que o ministro médico possa prescrever?

Lewis não nega essas alterações. Ao contrário, descreve-as no livro com minúcia, mencionando as mesmas técnicas digitais para obter imagens do cérebro invocadas pelo correligionário do presidente Michel Temer.

Tampouco deixa de dizer que a própria conceituação da dependência como enfermidade representou a certa altura um avanço. Graças a ela, desfez-se o estigma moralista de que basta força de vontade para abandonar o "vício".

Embora proclame pautar-se só por evidências, Terra não apresenta nenhuma e joga para a torcida conservadora e apavorada quando fala do "holocausto da nossa juventude" e de uma "epidemia sem precedentes de violência, gestada no útero de outra epidemia, a de consumo de drogas no Brasil".

Que evidências o médico tem a oferecer para corroborar sua afirmação de que as mortes da tal epidemia "decorrem mais do efeito das drogas que da ação do tráfico"? Ou para dizer que "a violência e o número de dependentes marginalizados diminuíram em todos os países que atuam com rigor contra o comércio e o consumo de drogas"?

Isso é o que o senso comum acredita. Mas não vale para as dezenas de milhares de mortos na "guerra às drogas" no México e nas Filipinas, nem para centenas de milhares de jovens escuros encarcerados por delitos menores relacionados a drogas no Brasil e nos Estados Unidos.

Frequentadores da igreja católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Manila, nas Filipinas, observam foto de vítima de 15 anos morta na guerra as drogas promovida nas Filipinas pelo presidente Rodrigo Duterte
Frequentadores da igreja católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Manila, nas Filipinas, observam foto de vítima de 15 anos morta na guerra as drogas promovida nas Filipinas pelo presidente Rodrigo Duterte - Folhapress

Proibicionismo e medicalização exagerada caminham hoje de mãos dadas para borrar a diferença entre uso e abuso de drogas, como parece ser o fulcro do interesse político de Terra. E, já que ele diz pautar-se apenas pela ciência, que reflita sobre o que diagnosticou extensa revisão publicada em 24 de março de 2016 na revista médica "The  Lancet":

"A ideia de que todo uso de drogas é perigoso e maléfico tem levado a políticas pesadas em cumprimento da lei e tornado difícil enxergar drogas potencialmente perigosas sob a mesma luz de alimentos potencialmente perigosos, tabaco e álcool, para os quais o objetivo da política social é reduzir danos potenciais".

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