Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Leite

Dependência química não é doença

Ministro Osmar Terra tentou votar nova política de drogas sem debate público

São Paulo

Não vendo avançar no Congresso seu projeto de lei de 2013 que engata marcha a ré na política de drogas, o ministro do Desenvolvimento Social Osmar Terra (MDB-RS) apelou. Levou ao principal órgão do Executivo para o assunto uma proposta de resolução de teor equivalente, baseada na noção de enfrentamento.

Leia-se: contra a legalização de substâncias hoje ilícitas, foco em abstinência e internação para tratamento de dependentes químicos. Tudo que não deu certo ao longo do século 20 e o contrário do que vem tendo sucesso, no 21, em países como Portugal, Uruguai e EUA (9 Estados com maconha recreativa legalizada).

Jovem fuma um cigarro de maconha durante uma marcha pela legalização da droga
Jovem fuma um cigarro de maconha durante uma marcha pela legalização da droga - Leonardo Benassatto-5.jun.17/FramePhoto/Folhapress

A apresentação da proposta entrou de última hora na pauta do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), ligado ao Ministério da Justiça. Só não foi votada na quinta-feira (1°) porque houve pedido de vista pelo representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Muito a propósito, aliás. A pesquisa científica está do lado de quem favorece políticas mais brandas para a questão, no que se convencionou chamar de redução de danos.

Noves fora os arroubos mais delirantes dos talibãs da antipsiquiatria e da luta antimanicomial, essa é a melhor conduta para quem quer diminuir o sofrimento dos dependentes e suas famílias, e não avançar a agenda do Centrão, da bancada BBB (boi, bala e Bíblia) ou da indústria carola das comunidades terapêuticas.

A neurociência mais criativa caminha na direção contrária da medicalização, ou seja, do modelo que encara a dependência química como doença que se vence apenas com internação, tratamento medicamentoso —drogas substitutas, para mitigar sintomas da abstinência ou sedar o "viciado"— e terapia adaptativa.

Há um livro corajoso a respeito, "The  Biology  of  Desire –  Why  Addiction  Is  Not a Disease" (A Biologia do Desejo – Por Que a Dependência Química Não É uma Doença), de Marc Lewis. Foi publicado em 2015 pela editora Public  Affairs/Perseus  Books.

Lewis, neurocientista e professor de psicologia do desenvolvimento na Holanda, é também um dependente químico que se livrou da droga. Ele tece seus argumentos a partir das histórias dolorosas dos dependentes Natalie (heroína), Brian (metanfetamina), Donna (analgésicos opioides), Johnny (álcool) e Alice (bulimia).

São narrativas de final não infeliz: todos superam a dependência, alguns com internação, outros com terapia, nenhum sem reencontrar um propósito de vida para o qual canalizar seu desejo e distanciá-lo da satisfação fugaz buscada na droga de maneira compulsiva.

A tese central de Lewis, impossível de reproduzir aqui com a minúcia anatômica e bioquímica do livro, aponta que a dependência não decorre de um mau funcionamento do cérebro, de uma enfermidade. Ao contrário, ela resultaria da operação ultraeficiente de módulos mentais com que a evolução nos dotou para seguir buscando satisfação de necessidades.

Paro por aqui, na recomendação de leitura, para concluir: houve um tempo em que os conservadores buscavam apoio em fatos e evidências, em especial da neurociência, para derrubar crenças propagadas por progressistas. Agora que seu campo foi tomado pela truculência argumentativa, sobram motivos táticos e racionais para a esquerda arrebatar-lhes as armas abandonadas.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.