Perdoe o leitor a imagem violenta do título, mas é por motivo nobre e tem só um sentido figurado. A lâmina afiada se volta contra o artigo do renomado químico Marcos Eberlin, professor da Unicamp e presidente da Sociedade Brasileira de Design Inteligente, publicado sábado (8) na página Tendências/Debates desta Folha.
Eberlin faz um esforço para apresentar essa variante do criacionismo —doutrina de fundo religioso que recusa a teoria neodarwinista como explicação suficiente da origem da vida e das espécies— sob roupagem de conhecimento científico. O fato de tal argumento partir de um cientista pode sugerir que se esteja diante de debate legítimo no campo do evolucionismo, mas não é o caso.
A situação se assemelha à guerrilha negacionista dos chamados céticos do aquecimento global agravado pelo homem. Tenta-se criar a aparência de uma controvérsia científica quando não existe uma, pois quem a move não tem o reconhecimento dos pares no campo em que se aventuram (climatologia e teoria da evolução, respectivamente) e o fazem por motivação extracientífica, para não dizer ideológica.
O químico da Unicamp escreve que a mal denominada “teoria do design inteligente (TDI)” compõe a “ciência da detecção do design”. O autor recorre a uma série de silogismos para tentar descartar a objeção de que a religiosidade seja a fonte oculta de suas propostas, mas parece evidente haver uma convicção prévia na existência de um ser inteligente que guiou a conformação da vida como a conhecemos.
Eberlin afirma que se trata de uma hipótese testável e falseável. A questão que se levanta contra ela, contudo, é anterior: seria ela necessária para explicar de forma completa toda a complexidade observada na natureza, dos motores moleculares que movem flagelos de bactérias à bizantina arquitetura do cérebro humano?
Uma regra básica do método científico dita que a explicação mais simples, com menos hipóteses e pressupostos, é melhor que a mais complicada. Ficou conhecida pela expressão Navalha de Occam (daí o título da coluna), a máxima de que hipóteses não devem ser multiplicadas sem necessidade, formulada pelo frade franciscano William de Ockham, ou Guilherme de Occam (1287-1347).
A norma carrega também o nome de lei da parcimônia. Tornou-se célebre a resposta que Pierre Simon Laplace (1749-1827) teria dado a Napoleão quando este lhe perguntou onde estava Deus em sua teoria sobre a origem nebular do sistema solar: “Não tenho necessidade dessa hipótese”.
Por outro lado, não há como abrir mão da seleção natural proposta por Charles Darwin (1809-1882) para explicar a evolução das espécies, hoje aperfeiçoada com o conhecimento acumulado pela genética, pela taxonomia e pelo registro fóssil no chamado neodarwinismo. Ela dá conta de fenômenos tão corriqueiros quanto o surgimento de resistência a antibióticos numa população de bactérias.
A chave para compreender —e aceitar— a teoria da evolução darwiniana está na profundidade do tempo geológico. Estima-se que o universo tenha quase 14 bilhões de anos; a Terra, 4,5 bilhões de anos –intervalo suficiente para que miríades de alterações minúsculas introduzidas por mutações se acumulem, sejam selecionadas e produzam estruturas intricadas como um olho, por exemplo.
Isso é consenso entre pesquisadores que investigam profissionalmente a evolução e são reconhecidos por essa comunidade como autoridades na matéria. Criacionistas divergem porque partem da premissa de que tais complexidades são irredutíveis e jamais poderiam ter sido originadas “por acaso”, como gostam de dizer.
Não que o consenso neodarwinista não possa ser posto em dúvida. Novos dados estão o tempo todo a exigir que teorias sejam aperfeiçoadas e reformuladas. Mas os adeptos do design inteligente não aportam novos dados à discussão, só hipóteses adicionais –e desnecessárias.
O que conduz à questão original: por que os criacionistas se dão a todo esse trabalho? Não há dúvida de que o fazem por motivação religiosa e, talvez, por uma necessidade interior imperiosa de conciliar crença com ciência, desvirtuando esta para abrir espaço àquela.
Por mais que se compreenda a comichão, parece mais sensato não sucumbir a ela. Antes de mais nada, porque assim se desvirtua a própria fé, ao submetê-la aos critérios da ciência (quando sempre ocupou o espaço insondável do mistério). Depois, para não lançar confusão e discórdia sobre a educação: nas aulas de ciência se ensina teoria da evolução, e só nas de religião, se for o caso, há lugar para criacionismo.
O saudoso Stephen Jay Gould (1941-2002), destacado evolucionista e ensaísta, ensinava que ciência e religião são magistérios que não se sobrepõem, domínios de conhecimento que não interferem –e não devem interferir– um no outro.
Que assim seja, para todo o sempre.
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