O ataque incendiário à estátua de Borba Gato levantou um vagalhão de opiniões maniqueístas. Alguns mais exaltados, contra ou a favor, aventaram que a próxima vítima poderia ser o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret.
A efígie do bandeirante em Santo Amaro fez por merecer e se tornou mais autêntica com as pedras coloridas lambidas por fumo negro, como que em sinal de luto. Ficaria ainda melhor demolida. A obra do Ibirapuera, entretanto, merece permanecer como e onde está.
Só o valor estético do trabalho mais célebre do modernista Brecheret justificaria plenamente sua preservação e incolumidade, sobretudo em contraste com o monstrengo do bacamarte. Há mais razões, contudo, a desfazer a aparente contradição entre defender uma e descartar a outra.
Ambas obras homenageiam empreendimentos que marcaram a história paulista, é verdade. Mas há diferenças sutis, como o fato de uma aludir a um tipo de expedição não explicitado na outra, e diferenças nada sutis, como a presença de cavalos, índios e uma embarcação omitidos na oponente.
O gigante, no primeiro caso, é a canoa. Com ela se davam as incursões pelo interior seguindo o curso do Tietê no sentido oeste, para longe do mar. Como grande inimigo havia a geologia, com os afloramentos de rochas mais duras a formar corredeiras e cachoeiras que era imperativo contornar.
O batelão vai arrastado sobre a terra, no esforço hercúleo da multidão de indígenas que sustentavam essas viagens fluviais, mais apropriadamente chamadas de monções. Bandeiras em geral se realizavam a pé, e os bandeirantes eram gente pobre, quase sempre descalça, desprovida das botas ostentadas pelo Borba Gato.
Os cavalos figuram um tanto fora de lugar, pois não parece prático transportá-los em barcos. Cabe aqui a dúvida: quem são os heróis reais da empreitada, senhores montados que encabeçam a coluna ou a massa de fortes que dão o sangue sobre o qual desliza a história?
Índios apresados em expedições anteriores morriam como moscas nas cruéis entradas para capturar e escravizar mais algumas centenas de parentes Guarani, Terena, Kaiowá, Kaingang, Kayapó, Krenak e Xavante que ainda povoavam a terra paulista. Assim operavam empreendedores bandeirantes.
O historiador Warren Dean registra que 240 “peças” nativas teriam sucumbido numa única bandeira, em 1607, ao ritmo de três por dia. O saldo entre mortos e escravizados era chamado de “remédio do sertão” por pioneiros sem capital para comprar negros africanos.
Nada disso transparece na estátua de 13 metros de Júlio Guerra: um homem em pose estática, olhar vazio e fixo (para não dizer maníaco), indivíduo solitário cujo único apoio é a arma. Protótipo brutalista da supremacia caipira, para glorificar o genocídio como construção de nação, quando paulistas não passavam de pobretões em busca de ouro.
Não é por outro motivo que tantos na extrema direita encarnada pelo presidente garimpeiro saíram em defesa da estátua de um facínora. Será pequena a surpresa se marcarem para os pés do Borba Gato sua próxima manifestação em defesa de bois, balas e bíblias.
Afinal, para essa gente que priva da companhia de nazistas, bandidos, índios e “comunistas” bons são bandidos, índios e “comunistas” mortos. Tudo a ver.
Espantoso foi encontrar pessoas mais equilibradas, de centro ou ligeiramente (bem ligeiramente) à esquerda, alinharem-se com a defesa desse outro mito, sob pretexto de preservar propriedade pública. Brecheret narra a história paulista sem escamotear atores e tensões; Guerra cultua patrimônio histórico que só envergonha.
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