Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu drogas

A intolerância de católicos e evangélicos com religiões da ayahuasca

Busca de transcendência deveria unir todas as confissões, não separá-las

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Levante as mãos e se espreguice quem nunca saiu da cama com a sensação de que os sonhos havidos eram mais reais que a vigília recém-conquistada. Nossas mentes fabricam estranhos mundos, vívidos, e pobre de quem não lhes dá atenção.

O debate menos interessante sobre eles busca estabelecer se têm realidade própria. Uma querela metafísica, por definição sem solução empírica possível.

Existem outras realidades além da que se dá a conhecer? Algo subsiste depois da morte? Tédio.

Detalhe de gomos de cipó grosso
Variedade do cipó-mariri usado para fazer ayahuasca - Divulgação/Inpa/UDV

Bem mais excitante é enveredar por um dos caminhos de que a humanidade dispõe, ou ela própria criou, para explorar essas brechas vertiginosas. Abismos que fazem a consciência ordinária tremer.

Interpretação dos sonhos é uma delas. Mitologias e cosmogonias, outra. Religião, outra ainda. Ateus ocidentais cartesianos, porém, sem disposição para o árduo labor psicanalítico, podem lançar mão de psicodélicos.

Modificadores da consciência como mescalina, psilocibina e dimetiltriptamina (DMT, presente na ayahuasca) são usados há séculos ou milênios por vários povos para sondar as profundezas. Tonto de quem se recusa a conhecer essas tecnologias.

Na última cerimônia com ayahuasca, mais espiritual que religiosa, surgiu o propósito de pôr à prova o ceticismo empedernido que não aceita a existência de deuses e quetais. No auge da força, braços e mãos abertos para receber o que se apresentasse, nada apareceu.

A solidão cósmica em que cada pessoa nasce, vive e morre mais uma vez se presenciou. Não mais, contudo, como um vórtice de desamparo, e sim como a dádiva de estar vivo e consciente disso, imerso na presença de tantos seres, quando poderia não estar.

Esse sentimento oceânico é vivido por muitos como experiência mística. A presença de Deus, do amor ou da luz divinos. Ninguém está obrigado a se enquadrar nessa moldura, mas convém não fazer pouco caso dela.

Há religiões que usam da ayahuasca para alcançar tal estado, como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal. Acreditam no poder e na santidade de plantas como a chacrona e o cipó jagube, ou mariri; em alguns templos, inclui-se a maconha entre os sacramentos naturais, com o nome de Santa Maria.

Outras confissões, como igrejas pentecostalistas, ousam um contato direto com o fogo do Espírito Santo. Buscam o encontro por meio de orações, cânticos e o dom da palavra carismática.

Existem também aquelas que se valem da música e da dança, como os dervixes muçulmanos. Ou da força visceral da percussão, da voz e das oferendas animais, como alguns rituais de matriz africana. Outras ainda, da sutileza dos maracás e da fumaça, como os cultos da jurema.

Vistas de fora, essas religiosidades se parecem muito. Algumas se destacam pela incapacidade de reconhecer essa fonte comum de transcendência. Passam ao ataque, agredindo como obras do demônio práticas que só se diferenciam das suas pela forma.

A consideração veio à tona durante a leitura da pesquisa Datafolha deste sábado (23) sobre maconha e psicodélicos. É marcante a diferença entre os que se declaram sem religião, mais tolerantes, e os religiosos, dos quais cerca de dois terços condenam até o uso religioso —veja só— de psicodélicos como a ayahuasca.

E não são só os evangélicos. Eles e os católicos abominam o uso religioso dessas substâncias em proporção similar, respectivamente 69% a 62%.

Marx disse que a religião é o ópio do povo, mas ele foi injusto com o ópio, narcótico que induz à prostração. Algumas, apesar de cristãs, se comparam mais à cachaça ou à cocaína de um povo sempre pronto a extinguir as luzes que não quer ver.

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