Descrição de chapéu drogas

Psicodélicos fazem reentrada triunfal na cultura e na medicina

Conferência nos EUA consagra uso terapêutico de substâncias proibidas, mas ainda há riscos

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Achira22 - stock.adobe.com

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

São Paulo

[resumo] Psychedelic Science 2023 reuniu 12 mil inscritos em Denver, Colorado; o quádruplo da conferência anterior em 2017, coroando movimento de reabilitação de psicodélicos para uso terapêutico contra depressão e outros transtornos. A ciência desvenda mecanismos insuspeitados de reconfiguração cerebral e põe fim a décadas de interdição à pesquisa imposta pela guerra às drogas, mas permanecem obstáculos sérios a superar.

O urso azul de 12 metros criado pelo artista Lawrence Argent espia pela fachada envidraçada do centro de convenções de Denver, Colorado (EUA), sede da conferência Psychedelic Science (PS2023), que reuniu 12 mil pessoas no final de junho. Uma boa alegoria para o interesse que psicodélicos despertam, agora que substâncias alteradoras de consciência fazem uma reentrada triunfal na cultura e na medicina —não sem alguns riscos.

 Obra "I See What You Mean", de Lawrence Argent, consiste em uma escultura gigante em formato de urso, com mais de 12 metros, espiando para dentro do Centro de Convenções de Colorado, em Denver.
Representação de urso na obra "I See What You Mean", de Lawrence Argent, espiando para dentro do Centro de Convenções de Colorado, em Denver - Kevin Moloney-19.ago.08/The New York Times

O evento anterior organizado pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) ocorrera em 2017 em Oakland, Califórnia. Seis anos bastaram para quadruplicar o número de inscritos, a indicar que esse setor de pesquisa deixa para trás o estigma criado por cinco décadas de interdição. Sua promessa terapêutica se revelou mais poderosa que o preconceito conservador.

"Do ponto de vista científico, o campo atingiu sua maturidade", avalia Luís Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp e um dos pesquisadores brasileiros da área que fizeram apresentações na PS2023. "A conferência deixou de ser o palco principal das grandes descobertas, que migraram para as revistas científicas. Trata-se de um movimento social multifacetado."

A Maps, liderada pelo ex-hippie Rick Doblin, apresentará neste ano à agência de fármacos FDA pedido de autorização para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) com psicoterapia apoiada no psicodélico MDMA (ecstasy), licença que pode sair em 2024. Na mesma trilha caminha a psilocibina de cogumelos para depressão, na etapa final (fase 3) de testes clínicos.

Aqui e ali, a mudança social anda mais rápido que a medicina baseada em evidências. O Colorado votou em 2022 por legalizar serviços de psilocibina à margem da FDA, seguindo o exemplo de Oregon em 2020. Vários estados, condados e cidades americanas vêm na esteira.

Na quarta-feira passada (12), a Universidade da Califórnia em Berkeley publicou pesquisa de opinião em que 61% dos eleitores americanos declararam apoiar a regulamentação de acesso a terapias psicodélicas. Na Austrália, uma semana após a PS2023, entrou em vigor autorização para psiquiatras receitarem MDMA e psilocibina.

A transformação acelerada se refletiu na área de exposição da PS2023. Em 2017, predominavam banquinhas com apetrechos coloridos, de cachimbos a camisetas tie-dye e imagens esotéricas. Em Denver, ruas e ruas com estandes profissionais. "Uma onda de novas empresas e produtos, borrando as fronteiras entre pesquisa e comércio", assinalou Bia Labate, antropóloga brasileira da ONG Instituto Chacruna, que organizou vários eventos em Denver.

"Agora há um mercado legal de cetamina e cânabis, antes ausentes, e um incipiente mercado de cogumelos. O apoio à comunidade de veteranos de guerra se tornou profundo [pelo interesse no tratamento com MDMA], e, com ele, a chegada de aliados no setor conservador. Também há crescimento vibrante de sociedades psicodélicas ao redor do mundo."

Após a abertura oficial por um carismático Rick Doblin vestido de branco, à vontade no papel de guru psicodélico corporativo, apresentou-se ninguém menos que Rick Perry. Ex-governador republicano do Texas e ministro de Energia do governo Donald Trump, o político deixou patente que não se vê mais tanta contradição entre militarismo e psicodelia, como havia na contracultura dos anos 1960-70, mobilizada contra a Guerra do Vietnã.

Tamanha reviravolta foi impulsionada pela avalanche de estudos, nas últimas duas décadas, mostrando o potencial terapêutico para uma miríade de transtornos, de depressão e ansiedade a enxaqueca, anorexia e TOC. Logo enxamearam os investidores, de olho nas oportunidades de patentes e lucros com terapias para condições hoje mal servidas pela farmacologia psiquiátrica.

Essa "medicalização" via FDA eriçou as penas de defensores de povos indígenas na PS2023. O incômodo se evidenciou na esfera intelectual das poucas mesas dedicadas a humanidades e conhecimento tradicional e na digna admoestação do líder yawanawá Biraci Brasil à ciência pela apropriação das "medicinas da floresta". Por fim, explodiu na ruidosa interrupção da sessão de encerramento por militantes de "ancestralidade" mexicana ou sul-americana radicados nos EUA.

O protesto chamou atenção, mas não a ponto de deslocar o centro de gravidade da PS2023 –a pesquisa. "A ciência psicodélica ganhou o mainstream, a renascença atingiu seu platô, conquistou corações e mentes", resumiu Stevens Rehen, neurocientista da UFRJ e do Instituto Usona (Wisconsin, EUA). "O futuro é psicodélico, e o Brasil tem cientistas e história para ser protagonista."

Com ele concorda Sidarta Ribeiro, seu colaborador em estudos com ayahuasca e outros compostos. "A ciência psicodélica brasileira conseguiu sobreviver ao holocausto científico do governo anterior, marcando presença na reunião com várias apresentações relevantes e originais." O próprio Ribeiro apresentou resultados de seu estudo com Annie e Bryan da Costa Souza na UFRN, no qual mostraram com ratos alguns aspectos paradoxais do efeito psicodélico.

Rehen deu palestra sobre o uso de organoides cerebrais ("minicérebros") na investigação das alterações provocadas em tecidos neurais por compostos como ayahuasca e 5-MeO-DMT. Luís Fernando Tófoli e Isabel Wiessner apresentaram dados sobre impactos cognitivos do LSD obtidos em experimento na Unicamp. Dráulio de Araújo falou do abrangente estudo com DMT que comanda na UFRN.

Araújo e Ribeiro participaram de uma investigação pioneira com imagens do cérebro sob efeito da ayahuasca, publicada em 2012 com o título "Vendo com os Olhos Fechados". Elas mostravam a ativação de áreas visuais do córtex que acompanham as características "mirações" dos adeptos de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV).

Reforçava-se ali, para Araújo, a noção de que psicodélicos permitem ao psiconauta enxergar com maior clareza seus próprios pensamentos. Pensamentos que, no caso da depressão e outros transtornos de humor, calham de ser negativos e repetitivos, arraigados como se tornam ao longo dos anos.

Sendo a visão o sentido por excelência da noção de realidade, como se diz na expressão "ver para crer", a interpretação das imagens surgidas nas viagens psicodélicas permitiria entrever novas perspectivas, enxergar possibilidades antes descartadas como inacessíveis.

Desde a década de 1950 se empregavam e investigavam LSD, mescalina e psilocibina na chamada terapia psicolítica, ou seja, aquela baseada no acesso e na reelaboração de traumas e conteúdos obscurecidos por repressão psíquica, tema da apresentação de Tófoli na PS2023. Essa linha de estudo e prática clínica quase desapareceu com a onda proibicionista a partir de 1966, mas vem ressurgindo com novas roupagens.

Hoje se credita à formação de conexões no cérebro essa capacidade dos psicodélicos de visualizar alternativas e desenraizar ideias fixas, a chamada ruminação. A rigidez no fluxo de sinais entre áreas do cérebro sofre um relaxamento, ao que parece, com um aumento da entropia na medida para que crenças entrincheiradas sejam revistas por outros ângulos e reelaboradas.

"O aumento da plasticidade neural induzido por psicodélicos era apenas uma intuição de alguns de nós há seis anos, hoje é um fato científico bem estabelecido, para o qual o Brasil contribuiu substancialmente", diz Ribeiro, aludindo a estudos da UFRN com ayahuasca e DMT.

"Há poucas semanas foi publicada a primeira demonstração de que os psicodélicos podem reabrir o período crítico de aprendizagem social." Ribeiro se refere aqui a um dos trabalhos que mais sensação provocaram na PS2023, a pesquisa de Gül Dölen, do Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins.

Sua apresentação se baseou no artigo científico publicado cinco dias antes no periódico Nature, um dos mais influentes do mundo, ao lado da Science. Por período crítico entenda-se a fase do desenvolvimento cerebral em que o sistema nervoso apresenta sensibilidade aumentada para estímulos de comportamento social, acompanhado de maleabilidade de sinapses e circuitos, como na infância.

É comum relatos de experiências psicodélicas compararem-nas com ver o mundo como que criado de novo (Albert Hofmann, 1906-2008, criador e primeiro psiconauta do LSD) ou a maravilha de voltar a enxergá-lo como era visto quando criança (Alexander Shulgin, 1925-2014, químico que redescobriu o MDMA). Dölen mostrou, em seu experimento elegante com camundongos, que não se trata só de sentido figurado.

Ela lançou mão de um ensaio padronizado para medir a preferência dos roedores por ambientes de isolamento ou de convívio social, conhecido como sCPP. Aplicou-o nos bichos injetados com substâncias inócuas (placebo) e com cinco psicodélicos: cetamina, psilocibina, MDMA, LSD e ibogaína.

O trabalho concluiu que só no caso dos camundongos psiconautas a curiosidade por interação com pares retomava os níveis característicos de animais juvenis. O que equivale a dizer que os psicodélicos descortinaram uma janela de oportunidade para aprendizado.

"A reabertura do período crítico pode ser o substrato neural subjacente à habilidade dos psicodélicos de induzir flexibilidade psicológica e reconsideração cognitiva, propriedades que têm sido ligadas a sua eficácia terapêutica no tratamento de adição [dependência química], ansiedade e depressão", propõe o artigo na Nature.

Psicodélicos clássicos como mescalina, LSD e psilocibina atuam no cérebro por meio dos mesmos receptores nos neurônios, como o 5HT2a, em que se encaixa a serotonina, neurotransmissor importante para a sensação de bem-estar. Cetamina, ibogaína e MDMA têm menos ou zero afinidade com o 5HT2a, porém.

Dölen mostrou que essas moléculas também escancaram a janela de aprendizado (ou redenção, no caso dos transtornos humanos). Em outras palavras, haveria um outro mecanismo comum a todos eles em funcionamento para aumentar a plasticidade cerebral, a prescindir da via serotoninérgica.

O time da Johns Hopkins acabou por identificar que esse mecanismo estaria relacionado com a regulação da matriz extracelular, uma espécie de rede de contenção que mantém células em nichos específicos nos tecidos. No cérebro, ela limita, por exemplo, o campo para multiplicação de sinapses.

Diminuída sua rigidez, neurônios ganham mais liberdade para entabular novas conversas. Não se trata, portanto, da plasticidade neuronal em sentido restrito, formação de novas sinapses por neurônios individuais. Mais que isso, o que se amplia é a chance para que vários deles o façam, no que foi batizado como metaplasticidade.

"É tentador especular que estados alterados de consciência compartilhados por todos os psicodélicos reflitam a experiência subjetiva de reabertura de períodos críticos", escreveram Dölen e seus coautores.

O grupo constatou também, no ensaio com camundongos, que a duração do efeito psicodélico observa correlação estreita com a duração da reabertura do período crítico. Ou seja, com o tempo em que as janelas rejuvenescedoras permanecem escancaradas.

"Esses resultados sugerem que psicodélicos poderiam servir como chaves mestras para destrancar um espectro amplo de períodos críticos", afirma a equipe. "Esse enquadramento expande o escopo dos transtornos (incluindo autismo, derrames, surdez e cegueira) que poderiam beneficiar-se de tratamento com psicodélicos."

Uma afirmação ousada, mas tornada plausível por essa notável investigação experimental. Até aqui, a proliferação de alvos terapêuticos aventados para drogas psicodélicas era vista como um calcanhar de aquiles, pois a aura de panaceia para todos os males psíquicos da humanidade poderia despertar tanto um entusiasmo injustificado quanto o descrédito público e de autoridades reguladoras.

A ideia de que psicodélicos salvariam o mundo já havia florescido com o movimento hippie, e deu no que deu: reação conservadora, guerra às drogas, colapso da pesquisa. Todos querem evitar novos percalços ditados pelo hype.

Por toda a PS2023, entretanto, ouvia-se constantemente a expressão "transdiagnóstico". Em outras palavras, já se firma como fato inconteste a capacidade dos psicodélicos de remediar tantos e tão díspares distúrbios.

Estudos como o de Dölen chegam para indicar que nisso pode estar a força, e não a fraqueza, das substâncias psicodélicas. Se parecem funcionar para vários transtornos, como sugerem estudos pré-clínicos e clínicos, seria porque elas viriam facilitar a abertura de canais na topografia acidentada que os distúrbios compartilham, redes cerebrais ilhadas ou bloqueadas por traumas psicológicos e físicos.

Ninguém perde nada por conter o entusiasmo, contudo. Poucos dias antes da conferência em Denver, a FDA lançou em consulta pública uma minuta de diretrizes para a aprovação de drogas psicodélicas inovadoras, sinalizando pontos em que poderão ocorrer tropeços.

Um deles é o controle de testes clínicos por placebo com o sistema duplo cego, crucial no padrão ouro para aprovar medicamentos, mas difícil de efetivar com substâncias de efeito subjetivo óbvio para voluntários e experimentadores. Outro é a ação de psicodélicos sobre o receptor 5HT2b, primo do 5HT2a, mas relacionado com mau funcionamento de válvulas cardíacas. O sarrafo vai subir, neste caso.

Há, por outro lado, obstáculos mais prementes no canal aberto pela Maps para aprovação da MDMA no tratamento de transtorno de estresse pós-traumático, ao longo do qual nadariam de braçada, em seguida, a psilocibina e outros psicodélicos.

Reportagem de Matt Wirz no Wall Street Journal cinco dias depois da PS2023 revelou que a associação só tem dinheiro em caixa para mais dois meses de atividade. Mas a conclusão do processo na FDA deve durar mais um ano e consumir centenas de milhões de dólares para deslanchar a comercialização propriamente dita do tratamento.

O braço comercial Maps PBC está avaliado em US$ 200 milhões, pouco menos que a empresa Atai Life Sciences, de Christian Angermayer, que chegou a valer US$ 3 bilhões no mercado, há dois anos, e encolheu para US$ 240 milhões na retração de investidores ocorrida desde então. A Maps PBC tenta levantar US$ 85 milhões, segundo Wirz, para não morrer na praia.

O único sinal visível dessa penúria na PS2023, em contradição com o gigantismo da conferência, eram os cartazes e slides com um código QR para fazer doações à Maps. Em 37 anos de existência, a ONG recolheu US$ 130 milhões na base da filantropia, pois não havia verbas de pesquisa disponíveis para substâncias proscritas.

A façanha coube a Doblin, e por isso ele foi tão festejado em Denver, chegando às raias de um culto à personalidade. O protagonista do renascimento psicodélico se entusiasmou e citou Hermann Hesse em sua "Viagem ao Oriente": "Era meu destino engajar-me numa grandiosa experiência".

Com um pouco mais de prudência, poderia prosseguir com a citação de Hesse e ajuntar: "Tendo a boa fortuna de pertencer à liga, foi-me permitido ser participante de uma jornada única. Que maravilha ela era naquele momento! Quão radiante e comparável a um cometa ela pareceu, e quão rapidamente foi esquecida e se permitiu que caísse em descrédito".

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