Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Tecnologia sanitiza guerra covarde entre Israel e Hamas

Drones se somam à imoralidade de minas terrestres e armas químicas ou biológicas

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Assisti na rede social X ao vídeo em que vários homens são mortos por disparos de um drone. Um deles já caído no chão. É de revirar o estômago.

Tudo indica que se trata de ataque israelense a civis palestinos, mas cabe tomar as imagens com um caminhão de sal. Já se foi o tempo em que ver era crer. Vai que se trata de mais um filminho fictício gerado por inteligência artificial.

As cenas lembram sequências similares, mas bem mais toscas, da série de TV "Fauda". A ficção sobre unidade israelense de elite que se infiltra entre palestinos despertava interesse pelo teor reduzido de maniqueísmo, mas hoje, sob a longa treva projetada desde Gaza, parece impossível revisitá-la.

Drone israelense sobrevoa região da Faixa de Gaza - Jack Guez/AFP

Não há como defender o massacre perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro, nem deixar de qualificá-lo como terrorista. Tampouco dá para aceitar como justo o ímpeto genocida da punição coletiva aplicada pelo governo de Netanyahu a Gaza, em tudo desproporcional e desumana.

Tal desumanidade não se destaca qualitativamente, talvez só quantitativamente, da de outras guerras, como a deflagrada pela agressão da Rússia à Ucrânia. Os dois lados recorrem ali à tecnologia distanciadora dos drones, empregada ainda pelo governo americano imperial para assassinatos em qualquer canto do planeta.

O vídeo X, por outro lado, se projeta contra a consciência moral com seu excesso de qualidade pictórica a evidenciar a covardia dessa modalidade bélica. Há nela mais tecnologia e precisão homicida do que nos não menos covardes foguetes disparados de Gaza ou do Líbano sobre civis israelenses.

O operador, a quilômetros dos homens que caminham pela estrada de areia, move o joystick para lá e para cá, puxa e afasta o zoom. Persegue em cores e alta resolução os que escaparam dos primeiros disparos. A meticulosidade mecânica e fria de um jogador bem treinado diante da tela.

Quem chamou a atenção para a peça de pornografia guerreira na rede foi o sociólogo Serge Katz. Nem sempre concordo com ele, mas foi o caso quando escreveu:

"O programa de assassinato por drones é uma das maiores barbaridades já inventada pela indústria militar. Isso muda a perspectiva e o sentido da guerra. O próprio militar que está atrás do comando do drone nem tem mais consciência do que significam vida ou morte. É gaming."

A definição da imagem não é suficiente para enxergar sangue, mas ele está lá. Pedaços de gente também. O que porventura estivesse visível da carnificina sumiu sob os borrões desfocados da emissora de TV, ciosa da sensibilidade de espectadores ou obedecendo a normas de censura ao horror gráfico da guerra.

Pode ser um viés de amostragem imposto pelo algoritmo delimitador de minha bolha, mas no início da guerra na Ucrânia havia mais imagens dessas, cruentas. O noticiário televisivo repetia à exaustão duas dezenas de cadáveres pontilhando as ruas de Bucha após o massacre de abril de 2022, por exemplo.

Estima-se, ou se subestima, que 32 mil pessoas já morreram em Gaza, até 70% delas crianças e mulheres. Onde estão seus cadáveres? Se não podem ser vistos, quando muito algumas fileiras de mortalhas brancas enfileiradas, desaparecerão das consciências?

Pode ser que repórteres fotográficos e cinegrafistas estejam enfrentando restrições incomuns em Gaza. Ou pode ser que editores de TV e de agências fotográficas estejam empenhados em sanitizar a imagem do massacre incessante ali perpetrado.

Estamos todos na posição do piloto de drone que escolhe, anonimamente e na segurança de uma poltrona, quem é justo matar. As telas deixam evidente que alguém, em algum lugar, decidiu que palestinos são mais matáveis que israelenses.

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