É repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp). Foi ombudsman da Folha de 1994 a 1997 e atualmente escreve coluna no caderno "Ciência".
É fogo
Há muito não se via perda tão explícita de compostura quanto a dos jornais fluminenses perdão, cariocas ''O Globo'' e ''Jornal do Brasil'' ao noticiarem a merecida e inquestionável conquista do Campeonato Brasileiro pelo Botafogo. Nada a estranhar, em publicações que já tinham abraçado abertamente a causa Rio de Janeiro, pondo todo espírito crítico de lado.
O Botafogo foi só um pretexto. Túlio, herói improvisado e canastrão para encarnar o ''novo carioca''. Enfim uma manchete que não precisava falar de sequestros.
Não escrevo movido por despeito, apesar de paulista e santista (sem muita convicção, nos dois casos). A exibição de desequilíbrio há de ter chocado o jornalista cioso da sua profissão como o leitor atento e mesmo o botafoguense não inteiramente inebriado com as consequências dos erros do juiz.
Ao ver o sonho de uma final exclusivamente carioca (Botafogo X Fluminense) murchar com o 5 X 2 no Pacaembu, ''O Globo'' já tinha saído com manchete enviesada: ''É só Fogo''. Quando o time de Túlio enfim sobrepujou a molecada do Santos, o jornal que melhor expressa os pavores da elite carioca caprichou. Abriu dois terços de sua capa para o campeão, algo inusitado em qualquer situação, e ainda sapecou o título ''poético'': ''Brilha uma estrela''.
O sobretítulo já avisava que o jornal dos Marinho considerava o empate ''heróico''. Mas o pior veio no último parágrafo do texto da chamada de capa. Reproduzo-o como exemplo acabado de opinião contrabandeada como informação e da crença vigorosa de que o futebol, como o samba, pode curar as feridas de uma sociedade dilacerada:
''Ao Santos, restam duas lições. Peixes morrem pela boca: o time cantou vitória ao ser derrotado no primeiro jogo da decisão, como se derrotas fossem motivo de festa. E peixes morrem na praia: a empáfia santista não resistiu à raça botafoguense''.
''O Globo'' tem obviamente direito a manifestar essa opinião, embora discorde de que forjar um inimigo seja a melhor maneira de produzir coesão social. De qualquer modo, o jornal deveria fazê-lo em editorial, ou em um texto assinado. Como leitor, senti-me tratado como débil mental e curioso para saber o que terão pensado leitores e assinantes cariocas que torçam pelo Fluminense, Flamengo, Bangu...
O ''JB'' foi mais discreto na capa. Também reservou cerca de dois terços para a conquista, mas com título sóbrio: ''Botafogo campeão''. Na capa do caderno ''Esporte'', porém, desandou. Trocou o ''o'' do logotipo pela escudo do time da estrela solitária. Abriu mão de sua própria identidade para forçar uma identificação que qualquer pessoa adulta percebe como embuste.
Números demais
A final alvinegra do Brasileiro fez também aflorar uma crítica comum à cobertura esportiva da Folha: a mania por números e estatísticas. O jornalista Ibsen Spartacus, por exemplo, implicou com um texto da edição do último dia 11, intitulado ''Santista Giovanni é mais eficiente que Túlio''
(pág. 4-6).
A análise publicada baseava-se nos seguintes números do campeonato: *Túlio tinha então 21 gols, contra 16 de Giovanni;
*Finalizava menos a gol (2,7 vezes por jogo, em média) do que o santista (3,8);
*Tinha melhor aproveitamento de passes (78% contra 70,9%);
*Tocava menos na bola (20,3 vezes por jogo), contra 33,5).
Comentário de Spartacus, em carta ao ombudsman:
''Ótimo. Túlio chuta menos, toca menos na bola e acerta mais passes, mas ainda assim consegue fazer mais gols. O texto não cita, mas os dois jogaram o mesmo número de vezes durante o campeonato. Por esses números, com certeza Túlio é o mais produtivo segundo todos os indicadores de produtividade existentes.
''Em nenhum momento o texto faz distinção entre as posições dos dois jogadores. Giovanni joga como ponta-de-lança, ou seja, é meio-campista. E é na faixa intermediária do campo que a bola fica a maior parte do tempo. Túlio é centroavante e joga no ataque todo o tempo, não volta para buscar jogo. O redator, porém, decidiu que o mais eficiente é o Giovanni.''
Numa espécie de desabafo, o jornalista concluía: ''É claro que o jornalismo objetivo, preciso, pode ser enriquecido com estatísticas. O que não dá é ver uma página inteira de índices praticamente aleatórios, sem interpretação ou pertinência visível''.
Considerei interessante o ponto de vista e pedi uma contra-argumentação do editor de Esporte da Folha, Melchiades Filho. Recebi um texto esclarecedor e ponderado. Primeiramente, a defesa do texto criticado por Spartacus:
''Para o leitor, como fica claro em seu texto, eficiência é apenas gol. Se Túlio toca menos na bola e faz mais gols, para ele é, portanto, mais eficiente.
''O argumento é respeitável e tem muitos adeptos entre os torcedores. Quem acompanha diariamente o futebol, no entanto, sabe que não é bem assim. Não basta fazer gols, é preciso criar condições para que eles surjam. Prova disso é a atuação de Giovanni na semifinal Santos 5 X 2 Fluminense (...). O jogador do Santos marcou dois gols e participou das jogadas dos outros três.
''O leitor considera, ainda, que a comparação não é válida pelo fato de Túlio e Giovanni não jogarem na mesma posição. Mas ela é válida por serem os dois artilheiros de suas equipes.''
O mais curioso da resposta do editor veio logo depois, quando rebateu a observação de que o texto original não citava que Túlio e Giovanni tinham participado do mesmo número de partidas. Leia: ''É verdade, o texto não o cita. Mas onde o leitor foi buscar esses dados? Nas páginas do próprio caderno de Esporte da Folha, o único a publicar informação tão básica. Só isso já mostra que os números publicados pela Folha são úteis até para quem não reconhece sua utilidade''.
É o que eu chamo de xeque-mate.
Censura
Quem disse que a censura acabou? Não no Instituto Metodista de Ensino Superior, de São Bernardo (ABCD), em que terceiranistas do curso de jornalismo tiveram seu jornal-laboratório ''Ensaio'' vetado pela direção da escola no início do mês. Motivo: o tema da publicação semestral, ''Mercado do Sexo''.
A decisão de impedir a circulação partiu do diretor da Faculdade de Comunicação, Miguel Rocha, e foi referendada pelo Colegiado do Departamento de Comunicação. Em declaração à Agência Folha, o diretor disse que ''o trabalho não mostrava o outro lado da questão, ou seja, não esclarecia sobre a exploração das mulheres e o risco de contaminação por Aids''. E sentenciou: ''O trabalho induzia à busca pelo sexo''.
A responsável pela edição de número 81, Ana Lúcia Araújo, disse à Agência Folha que o objetivo era mostrar quanto dinheiro movimenta o mercado do sexo: ''A abordagem foi puramente econômica. Nenhuma das matérias induz alguém a procurar pelos serviços de motel, sex shops e boates. É um mercado enorme, que movimenta R$ 200 milhões mensais''.
A melhor forma de dirimir esse gênero de divergência, na comunicação, é deixar que o público decida quem tem razão. O resto é censura.
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