Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

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Marcelo Viana

Beleza da matemática de Maryam Mirzakhani e Marina Ratner é eterna

Crédito: Universidade de Stanford/Divulgação Maryam Mirzakhani, que ganhou a medalha Fields em 2014
Maryam Mirzakhani, que ganhou a medalha Fields em 2014

Três anos atrás, no centro de convenções Coex em Seul, preparava-me para assistir a uma palestra do Congresso Internacional de Matemáticos quando se sentou ao meu lado uma jovem matemática de cabelos curtos, parecendo muito cansada. Trocamos frases de cortesia, e ela deu mostras de me conhecer. Eu certamente sabia quem era ela: Maryam Mirzakhani, da Universidade Stanford, nascida no Irã em 1977 e primeira mulher a ganhar a medalha Fields, a distinção mais prestigiosa da matemática.

Num ano em que as Fields se destacaram pela diversidade –um brasileiro, um indiano, uma iraniana e um austríaco–, no Brasil focávamos em destacar a façanha de Artur Avila, o primeiro laureado na história a realizar todos os estudos em um país em desenvolvimento. Para o resto do mundo, era ainda mais notável que só então, pela primeira vez desde sua criação, em 1936, a medalha Fields tivesse ido para uma representante da metade feminina da humanidade.

Acompanhada pelo marido e pela filha de três anos, Maryam estava visivelmente feliz. O esforço para participar nas atividades, porém, era igualmente evidente. Sabíamos que lutava contra um câncer de mama, que quase a impedira de participar no Congresso. Não conseguiu apresentar sua palestra, mas os organizadores optaram por só anunciar o cancelamento após a sua partida, para evitar questionamentos inoportunos.

Do outro lado do mundo estava Marina Ratner. Judia nascida na União Soviética em 1938, ela emigrou nos anos 1970 para Israel e os Estados Unidos, onde se tornou professora na Universidade da Califórnia em Berkeley. Eu a conheci pessoalmente cerca de dez anos atrás, em uma conferência em Los Angeles. O também russo Vladimir Arnold afirmava que em seu país os alunos eram ensinados a "trabalhar duro e a provar teoremas que se tornarão pedras fundamentais da ciência". Marina foi um exemplo dessa magnífica tradição.

Ao contrário da maioria dos matemáticos, que produzem seus melhores resultados muito jovens, Marina já tinha mais de 50 anos quando provou os espetaculares "teoremas de Ratner". Eles afirmam que certos objetos matemáticos –os fechos das órbitas de fluxos unipotentes em espaços homogêneos– são extraordinariamente bem comportados. Os matemáticos usam a palavra "rigidez" para se referir a afirmações desse tipo.

Essa descoberta tornou-se uma ferramenta poderosa para resolver problemas em muitas áreas, da teoria dos números aos sistemas dinâmicos. Mas Marina nunca foi tão famosa quanto merecia. Sua personalidade reservada e o fato de trabalhar sozinha, sem colaboradores nem alunos, talvez ajudem a explicar. Em um belo artigo no jornal "New York Times", minha colega Amie Wilkinson, da Universidade de Chicago, conta que Marina a recusou como orientanda de doutorado, por achar que tinha fracassado com outro aluno anteriormente.

Diferentemente de Marina, o talento de Maryam foi reconhecido muito cedo. Com 17 e 18 anos participou nas Olimpíadas Internacionais de Matemática de 1994 e 1995, tendo obtido medalha de ouro nas duas. Meu colega Hossein Movasati, do Impa, foi "treinador" da equipe iraniana nesses dois anos. "Percebi que seria tarefa muito difícil encontrar problemas desafiadores para manter alunos como a Maryam pensando por um tempo. Eles resolviam tudo muito rapidamente, e logo fiquei sem questões para propor."

Em 1998, quando Hossein já iniciava o doutorado no Impa, um acidente com um ônibus da Universidade Sharif, de Teerã, matou sete alunos e dois motoristas. Maryam estava no ônibus, mas sobreviveu. Pouco depois, completou a graduação e mudou-se para os Estados Unidos, onde fez o doutorado na Universidade Harvard, dando início a sua carreira meteórica.

Seu trabalho mais famoso pode ser resumido como um "teorema de Ratner para fluxos de Teichmüller". Também trabalhei nessa área, e os especialistas acreditavam que esse tipo de resultado ainda não estava acessível, que muita matemática teria de ser feita antes de chegar a um teorema tão potente. A União Matemática Internacional, ao conceder a medalha Fields a Maryam, destacou que "é extraordinário descobrir que a rigidez dos espaços homogêneos tem um eco no mundo não-homogêneo".

Mas esse não foi o único elo comum entre Marina e Maryam. Amie Wilkinson explica ainda no artigo no "New York Times" por que a carreira é tão difícil para as mulheres. "Há uma quantidade surpreendente de pressões sociais contra tornar-se uma matemática. Quando você está em minoria, precisa de força e persistência acima do normal para resistir." E destaca o papel de Mirzakhani e Ratner como modelos inspiradores. "As estudantes me dizem que o fato de eu ser professora as faz acreditar que a matemática também é para mulheres. Fui inspirada dessa forma pela professora Ratner. Espero ter tido esse papel para a professora Mirzakhani. E ela inspirou toda uma geração de jovens mulheres."

Marina Ratner morreu em 7 de julho, vítima de um ataque cardíaco. Maryam Mirzakhani sucumbiu ao câncer sete dias depois. A magia de suas vidas persistirá por muito tempo. A beleza de sua matemática é eterna.

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