Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa

O diabo mora nos detalhes

O sucesso da política industrial depende do desenho e da governança

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O anúncio da Nova Política Industrial despertou polêmica. Alguns apontaram o risco de repetir os fracassos da década passada. Outros defenderam a proposta, afirmando que "erros do passado já foram reconhecidos e consertados".

Segundo a leitura convencional, liberais seriam contra qualquer política industrial, enquanto os desenvolvimentistas defenderiam que o crescimento econômico passa por ações governamentais para estimular o investimento e a produção.

O problema, contudo, é mais sutil e cheio de nuances. Existem exemplos bem-sucedidos de políticas de desenvolvimento setorial no Brasil e em outros países. Existem também muitos casos de fracasso.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as ministras Nísia Trindade e Luciana Santos no lançamento da Nova Indústria - Gabriela Biló /Folhapress

A teoria econômica identifica casos específicos de mercados em que uma maior intervenção do governo pode ser adequada.

Algumas ações não são rentáveis para empresas privadas, mas geram ganhos coletivos caso sejam coordenadas pelo governo. Isso ocorre, por exemplo, em novas tecnologias ou em medidas que melhoram o acesso de produtores locais a mercados externos.

Essas circunstâncias levam à adoção de políticas públicas, como o apoio à pesquisa científica ou aos protocolos para vacinação de animais.

Em outros casos, a ação pública pode ser mais eficaz por meio de uma governança complexa, que inclui a existência de Agências de Estado com mandato e independência, como em setores de saúde ou de energia.

Política industrial significa conceder subsídios, benefícios tributários ou proteção contra concorrência. Essas medidas podem ser adequadas em certas circunstâncias, como complementaridade entre setores produtivos ou ocorrência de externalidade.

Entretanto, não é tarefa tecnicamente fácil diagnosticar esses casos e desenhar a política mais adequada em cada um.

Há um problema adicional: o risco de captura da política pública por grupos de pressão, cujo lobby é fortalecido pela concessão de benefícios públicos. Uma vez concedidos, fica mais difícil retirá-los, mesmo comprovado o fracasso das medidas.

Esses problemas ocorreram seguidamente em muitos países, incluindo o Brasil, como sistematizam os artigos citados no fim desta coluna.

Durante muito tempo, esse debate foi baseado em narrativas tecnicamente fracas. Argumentos genéricos, com dados convenientemente selecionados, embalavam textos com muitos adjetivos e pouca estratégia de identificação de causalidade entre a política adotada e as suas consequências.

São muitas as dificuldades para testar a eficácia dessas diversas políticas, ou se os gastos públicos são compensados pelos benefícios sociais obtidos.

Na última década e meia, contudo, a pesquisa nessa área teve avanços importantes, com novas técnicas de estimação e acesso a bases de dados que permitiram documentar melhor os impactos dessas políticas.

Nos casos de sucesso, existem alguns fatores (a lista não é exaustiva) relevantes.

Primeiro. A intervenção pública deve ter por objetivo que o setor privilegiado se torne produtivo, capaz de competir com os melhores produtores de outros países.

A política deve ser temporária, com prazo para acabar. Se der certo, os benefícios não mais são necessários. Se ela fracassou, as empresas arcam com as consequências.

No caso da China, a política parece ter sido mais eficaz em aumentar a produtividade nas empresas em setores com maior competição, como documentam Philippe Aghion e coautores no artigo "Industrial policy and competition".

Segundo. A política industrial deve avaliar os custos e benefícios sociais da intervenção, comparando-os com usos alternativos dos recursos públicos. Tema tecnicamente bem mais difícil do que a maioria imagina. As medidas dotadas devem ser claras sobre os objetivos a serem obtidos e possuir uma governança independente para acompanhar os resultados.

Terceiro. Política industrial não significa necessariamente apoio à manufatura, como usualmente se supõe no Brasil.

Com a queda expressiva dos custos de transporte e de comunicação desde meados do século passado, o que se entende como indústria foi desmembrado espacialmente.

As atividades de maior valor adicionado, como gestão de negócios, pesquisa e inovação, incluindo setores de serviços, como as novas técnicas em software e computação, ficam próximas de centros geradores de conhecimento e capital humano.

Fábricas de montagem com baixo valor adicionado foram deslocadas para regiões, ou países, com menor custo de produção, incluindo salários e tributos.

Quarto. Deve-se ter um diagnóstico tecnicamente preciso do problema a ser resolvido. Esse ponto é muito mais difícil do que a maioria imagina.

Não basta dar subsídio e proteções para que empresas se tornem produtivas. A pesquisa acadêmica documenta incontáveis casos de fracasso, como a regra de conteúdo local para componentes das plataformas de petróleo no Brasil.

Muito se fala da Embraer, mas se esquece que sua história começou mais de duas décadas antes, com a criação do ITA, a contratação de muitos professores estrangeiros e a formação de capital humano. O desenvolvimento do conhecimento em tecnologia viabilizou a política industrial.

No meio do caminho, projetos foram tentados e fracassaram, até que se achou o nicho do desenho e montagem de aviões de médio porte, que se beneficia da importação de componentes produzidos em outros países.

Quinto. Os mecanismos de apoio e os custos públicos devem ser transparentes. Subsídios e custos fiscais de transferência de benefícios para interesses privados deveriam constar do orçamento público. Quanto custa? Quem se beneficia?

Na China, empresas devem divulgar em seus balanços diversos benefícios obtidos.

No Brasil, por outro lado, utilizam-se mecanismos sinuosos, como o uso de fundos controlados pelo governo que mascaram o custo fiscal envolvido, como documentou Marcos Mendes em 26 de janeiro nesta Folha.

Sexto. A governança da política industrial é um tema difícil. Por um lado, o poder público deve conhecer os detalhes técnicos dos setores a serem beneficiados e possuir uma imensa capacidade de coordenação. Por outro lado, deve ter autonomia para gerir a política industrial e evitar a sua captura por lobbies de empresas ineficientes.

Peter Evans cunhou o termo "Embedded Autonomy". Samuel Pessoa, no texto citado abaixo, comenta os dilemas dessa governança, casos de sucesso e de fracasso.

Detalhes do desenho das medidas, das metas e da governança, além de escolhas técnicas cuidadosamente selecionadas, são essenciais para o sucesso de políticas de desenvolvimento setorial. E detalhes é o que anda a faltar na Nova Política Industrial.

Dani Rodrik, um dos principais economistas que defendem política industrial, sistematizou, com coautores, parte da pesquisa empírica sobre pontos discutidos nesta coluna em "The New Economics of Industrial Policy".

Samuel Pessoal comenta diversos trabalhos e experiências com políticas industriais no texto "Reavaliação da Política Industrial".

Fernando Veloso, em "Productivity and Growth in Brazil", resenha a pesquisa aplicada sobre produtividade no Brasil.

O livro "Para não esquecer", coordenado por Marcos Mendes, sistematiza diversas políticas de intervenção pública para promover o desenvolvimento no Brasil que fracassaram no começo da década passada.

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