Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

30 de março, faz um ano que você morreu

As águas de março se tornam agora infinitas

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30 de março faz um ano que você morreu.

3 de março foi o dia da outra perda devastadora da minha vida, do pai, há décadas; as águas de março se tornam agora infinitas.

Tento de novo.

30 de março, faz um ano que você morreu.

Eu queria escrever três linhas matadoras e deixar a maior parte deste espaço vazio, para marcar sua ausência. Essa que ainda pulsa dentro de mim. Como a linda coluna em branco só com o desenho do seu rosto na semana da sua morte.

Ou queria poder escrever as três linhas definitivas e cheias de sangue como a outra bela coluna que tinha seu nome e a sua foto em vermelho.

Ilustração mostra 3 relógios de areia com plantas em volta. Enquanto no primeiro, há mais areia do que planta, no terceiro isso se inverte.
Luciano Salles

Guardo esses papéis todos aqui na bancada do lado da mesa de jantar, do lado da urna com as cinzas. Nem passou tanto tempo e eles já estão todos amarelados. Olho para essa pilha de pedaços de jornal que se amontoam, tão antiga, tão fora de moda e penso: mas nem passou tanto tempo, como já está tudo tão seco e amarelado?

O tempo talvez passe mais rápido para o mundo, e não para mim.

Tento de novo e de novo as três linhas definitivas. Fatais.

Mas não consigo.

Me esparramo. Sempre excessiva.

Juro que esta é a última vez que uso este espaço para escrever teu nome.

É que transbordo.

Há um ano venho guardando papéis.

Nas roupas e nos objetos ainda não tive coragem de mexer.

Meu corpo guardo intacto, quase intacto, pois que pedras o atingem.

Nossa casa guardo intacta, quase intacta, pois que pedras tentam atingi-la. Mas a protejo a despeito de tudo, como prometi.

E guardo nosso pequeno, "um filho para mim", como você dizia, da forma tão doce e tão máscula que só você podia ter. Um homem.

Você oferta o pulso para seguir, mesmo quando algo se rompe, como agora.

Minha nascente, meu ofertório, meu norte imaginário.

Faça a coisa certa. Escuto essa frase ecoando sobre os destroços.

Sobre as pedras, as mentiras, as bombas.

Eles continuam fazendo a guerra e desferindo golpes sujos.

Deus, dai-me a coragem para escolher as disputas que devem ser lutadas.

Não quero vir a pensar que desisti dessas.

Sobreviva. Escuto hoje esse imperativo ecoando de dentro das vísceras.

Sob o útero, o osso, o fio do cabelo e tudo que enfraquece a cada dia.

Sobreviva, ainda e até o final.

Você não pode desistir.

Vivo pela memória, pela escrita e por cada um que te mantém pulsando.

30/3 fará um ano, pela primeira vez.

Vou catando pelo chão os restos de força para abrir a urna e começar a espalhar as cinzas.

Primeiro no ar, depois na terra.

Talvez em algum oceano.

O recorte do mar pelo homem.

Veneza.

Onde fomos tão, tão felizes.

As cinzas escapam das minhas mãos.

Se desfazer no infinito é a única coisa que todos temos em comum.

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