30 de março faz um ano que você morreu.
3 de março foi o dia da outra perda devastadora da minha vida, do pai, há décadas; as águas de março se tornam agora infinitas.
Tento de novo.
30 de março, faz um ano que você morreu.
Eu queria escrever três linhas matadoras e deixar a maior parte deste espaço vazio, para marcar sua ausência. Essa que ainda pulsa dentro de mim. Como a linda coluna em branco só com o desenho do seu rosto na semana da sua morte.
Ou queria poder escrever as três linhas definitivas e cheias de sangue como a outra bela coluna que tinha seu nome e a sua foto em vermelho.
Guardo esses papéis todos aqui na bancada do lado da mesa de jantar, do lado da urna com as cinzas. Nem passou tanto tempo e eles já estão todos amarelados. Olho para essa pilha de pedaços de jornal que se amontoam, tão antiga, tão fora de moda e penso: mas nem passou tanto tempo, como já está tudo tão seco e amarelado?
O tempo talvez passe mais rápido para o mundo, e não para mim.
Tento de novo e de novo as três linhas definitivas. Fatais.
Mas não consigo.
Me esparramo. Sempre excessiva.
Juro que esta é a última vez que uso este espaço para escrever teu nome.
É que transbordo.
Há um ano venho guardando papéis.
Nas roupas e nos objetos ainda não tive coragem de mexer.
Meu corpo guardo intacto, quase intacto, pois que pedras o atingem.
Nossa casa guardo intacta, quase intacta, pois que pedras tentam atingi-la. Mas a protejo a despeito de tudo, como prometi.
E guardo nosso pequeno, "um filho para mim", como você dizia, da forma tão doce e tão máscula que só você podia ter. Um homem.
Você oferta o pulso para seguir, mesmo quando algo se rompe, como agora.
Minha nascente, meu ofertório, meu norte imaginário.
Faça a coisa certa. Escuto essa frase ecoando sobre os destroços.
Sobre as pedras, as mentiras, as bombas.
Eles continuam fazendo a guerra e desferindo golpes sujos.
Deus, dai-me a coragem para escolher as disputas que devem ser lutadas.
Não quero vir a pensar que desisti dessas.
Sobreviva. Escuto hoje esse imperativo ecoando de dentro das vísceras.
Sob o útero, o osso, o fio do cabelo e tudo que enfraquece a cada dia.
Sobreviva, ainda e até o final.
Você não pode desistir.
Vivo pela memória, pela escrita e por cada um que te mantém pulsando.
30/3 fará um ano, pela primeira vez.
Vou catando pelo chão os restos de força para abrir a urna e começar a espalhar as cinzas.
Primeiro no ar, depois na terra.
Talvez em algum oceano.
O recorte do mar pelo homem.
Veneza.
Onde fomos tão, tão felizes.
As cinzas escapam das minhas mãos.
Se desfazer no infinito é a única coisa que todos temos em comum.
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