Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Mente

O Pai Hiper Presente

Tão mais sólido e presente, quanto mais lhe falta na realidade um ser humano comum que consiga ocupar esse lugar a contento

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Esses dias, em um outro canal, quis prestar uma homenagem àquilo que podemos chamar, mesmo que aos trancos e barrancos, o grande matriarcado Brasil. Falei sobre o Pai Ausente, talvez o mais comum de nossos tipos de pai. Milhões de famílias são sustentadas, material e simbolicamente, sobretudo por mulheres. Porque foram largadas pelos homens, antes, durante ou depois do nascimento dos filhos, porque os pais estão mas não estão (não sustentam sua função), porque estão mas operam na violência, porque foram mortos. Ou porque o batidão da vida só consegue fluir com a frágil rede de apoio que se trama num misto de assistência do Estado e de relações familiares e de vizinhança, sobretudo femininas e infantis. Mulheres revezam-se no cuidado dos filhos umas das outras e no sair para trabalhar para ganhar o sustento com que se remuneram. Os mais velhos cuidam dos que vão chegando.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de S.Paulo no dia 31 de Agosto de 2022, faz uma releitura da pintura “A criação de Adão”, de Michelangelo, na Capela Cistina, focando, especificamente, do detalhe da mão do homem tentando tocar o dedo de Deus. Na ilustração do Luciano, a mão do homem está avidamente tentando alcançar a mão de Deus. A mão do homem é de cor marrom e a mão de Deus está em branco, apenas com as linhas de contorno na cor vermelha escura. A distância entre as mãos é maior na ilustração do que na possibilidade do toque que há na pintura da Capela Sistina
Ilustração de Luciano Salles faz uma releitura da pintura A Criação de Adão, de Michelagelo, na Capela Cistina - Luciano Salles

Se você tem dúvida sobre isso, pode assistir ao grande artista revelador da alma chamado Eduardo Coutinho, em seu filme "póstumo" Últimas Conversas. Ou também reparar num meme que circula hoje: Feliz dia do ‘pergunte para sua mãe’. Meme, essas cápsulas que, pelo chiste, revelam o inconsciente da nossa cultura - e que sem dúvida Freud analisaria em sua Psicopatologia da vida cotidiana hoje. Se o filho dá errado, a culpa é da mãe, que não soube educar. Se dá certo, mérito do pai -e da mulher que soube escolher bem seu homem e fazer tudo certo para não desagrá-lo e manter seu interesse no núcleo familiar, com engenho e arte.

Enfim, falei dessa grande figura de pai, o Pai Ausente. Aí reclamaram que não falei do exercício digno e criativo da função paterna. Prometi, inclusive ao meu irmão, que faria na próxima oportunidade.

Eis que no mesmo dia Salman Rushdie é esfaqueado. E assim chegamos ao tema de hoje: o Pai Hiper Presente.

Como você ousou colocar meu deus e meu profeta nessa posição irônica? Como você tem a coragem de destituir o que de mais sagrado alimenta o sentido da minha parca vida? O Profeta deve para sempre permanecer como intocável e, pelamor, vivo. Deus Pai Todo Poderoso não pode estar morto, nem sequer em dúvida. Isso me destrói, isso nos destrói como comunidade e como aspirante a nação. Como sabemos, toda religião é um sistema simbólico humano que erige um deus transcendente que tem a função de nos unir como irmãos a fim de construir uma comunidade vencedora diante da dureza da vida. Portanto, o pai soberano não pode falhar assim. Não pode ser dessacralizado. Rushdies, Lennons, mulheres, não ousem.

E nesse momento reencontramos o matriarcado Brasil. Quando fica muito, muito difícil, a gente apela para a violência. Contra si ou contra o outro. Para dentro (normalmente a melancolia, ou a esquize), para fora (a destruição, quiçá a perversão). Se estamos loucos e doentes, podemos cometer crimes. Que fique bem claro que uma coisa não justifica a outra. Louco e doente você pode cometer crimes. E eles não são menos crimes por isso. Aliás, a gente comete crimes normalmente por isso mesmo. A racionalidade é uma pequena ilha de lucidez que a espécie humana com linguagem consegue, em alguns momentos, depois de muito esforço, arrebanhar.

Pai, por que me abandonaste? Esse o grito lancinante daquele que precisa de qualquer maneira recriar um pai. Tão mais sólido e presente, Hiper Presente, quanto mais lhe falta na realidade um ser humano comum que consiga ocupar esse lugar a contento. Um homem, um pai, falível mas honesto: sem fantasia, sem violência, sem mentira, sem arcabouço manipulativo para continuar a estar num lugar mítico-divino.

Esse pai anda em falta. Esse homem anda em falta. É o que escutamos todos os dias nos divãs e nos jornais. A crise da paternidade sangra em todos os poros da terra.

E sobre nós e nossas buscas infindas e mortíferas, paira, sólida, indiferente, soberana, a Lua de Esturjão.

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