Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Misoginia antissemita

O Hamas estuprou judias, mas ninguém liga

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Se você não entende por que mulheres têm medo de denunciar estupro, sugiro que leia a seção de comentários da reportagem "Como o Hamas usou a violência sexual como arma nos ataques de 7 de outubro". O texto publicado pela Folha é tradução do New York Times, resultado de dezenas de entrevistas com sobreviventes, familiares, médicos, soldados, especialistas em violência sexual, verificação de dados e da autenticidade de vídeos.

Três jornalistas passaram dois meses investigando as denúncias e afirmam que descobriram "novos detalhes dolorosos", evidências de que "os ataques contra mulheres não foram eventos isolados, mas parte de um padrão mais amplo de violência de gênero em 7 de outubro". Vou dar uma mãozinha na interpretação de texto: o Hamas usou o estupro como arma de guerra. Exatamente o que escrevi três dias depois dos ataques. O que a ONU, a ONU Mulheres, organizações feministas e ativistas simplesmente resolveram ignorar. A reportagem do Times só comprova que para esse pessoal, a vítima tem sempre razão, menos se for judia. Para parte dos leitores da Folha, também.

A descrição do horror a que foram submetidas dezenas de mulheres e meninas por terroristas do Hamas é de embrulhar o estômago, é de chorar pela constatação de que a crueldade tem um corte de gênero muito específico. Mas o que me fez vomitar mesmo foram alguns comentários que tratam o relato do jornal americano como "fake news do lobby sionista", "notícia requentada", "narrativa de vitimismo". Um leitor nem disfarçou o desprezo, segundo ele, as vítimas do pogrom no sul de Israel "não merecem piedade nenhuma". Mas não foram apenas homens. Machismo meu achar que leitoras seriam incapazes de embarcar em comentários isentos de solidariedade, mas infelizmente mulheres engrossaram o coro da misoginia antissemita.

Sim, é antissemitismo. A reportagem do Times, assim como o meu artigo de hoje e outros anteriores, não é discussão sobre geopolítica, não é sobre quem tem razão nessa guerra. É sobre dezenas de corpos femininos nus ou seminus, mutilados, amarrados, carbonizados. Mulheres mortas com as pernas abertas. Relatos de estupro coletivos, feitos por terroristas que conversam, gritam e riem. É sobre homens que estupram mulheres e desfilam suas cabeças degoladas. É sobre mulheres violentadas enquanto são esfaqueadas. É sobre violência de gênero. Sobre o estupro como arma de guerra, um método pesquisado e documentado há décadas. Portanto, se os relatos devastadores sobre a violação de judias são questionados apesar das evidências, o nome disso é antissemismo.

Uma das leitoras, cheia de sarcasmo, duvida da veracidade das informações porque as testemunhas não querem dar os nomes. Outra é mais econômica na maldade: é mentira, segundo ela. Esse tipo de gente não acreditaria nem se as estupradas ressuscitassem e mostrassem como foram dilaceradas. Numa entrevista recente, a jornalista Christina Lamb, autora do livro "Nosso corpo, seu campo de batalha", um calhamaço de 500 páginas sobre estupros em zonas de conflito, disse que as vítimas podem levar anos, décadas para conseguir falar sobre a violência que sofreram. "Algumas jamais falarão." É um trauma coletivo que a falta de empatia e o ódio não conseguem vislumbrar.

Lamb, correspondente do jornal inglês The Times, vem escrevendo sobre a violência no 7 de outubro e lembra que o estupro é o crime de guerra mais negligenciado. "Quando as pessoas pensam sobre a guerra e quando os jornalistas discutem conflitos étnicos ou nacionais, aquilo a que se referem como ‘vítimas’ são aqueles que foram mortos, e não aqueles que foram ‘apenas’ brutalmente violados."

O Hamas estuprou e matou dezenas de mulheres. Neste momento, há ainda dezenas de reféns que passam pelo mesmo terror, incluindo homens, como já foi relatado. É algo que vem sendo dito desde 7 de outubro. O New York Times passou dois meses investigando as denúncias, publica reportagem, que não deixa dúvida sobre a barbárie a que mulheres foram submetidas. Detalhe: o mesmo jornal que dias antes deu espaço para um artigo do prefeito de Gaza, nomeado pelo grupo terrorista Hamas. Uma jornalista especialista em violência de gênero em guerras atestou a veracidade das histórias, mas pelo que percebi, para muitas pessoas, tanto faz. Tem os que culpam mulheres violentadas por usarem saias curtas. Podemos atualizar a misoginia do estupro: quem mandou ser judia?

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